As codornizes …
Histórias
da Guiné
Existia no destacamento de
Nova Sintra uma caçadeira de um cozinheiro que
tinha sido comprada a um
comerciante em Bissau, uma arma usada e que não revelava a mínima segurança porque, algumas vezes, os cartuchos rebentavam no
cano, constituindo um perigo iminente.
Mas, os militares, muitas
vezes arriscavam e, lamentavelmente, não olhavam ao perigo e foi o caso do
furriel Barros que desafiou esse mesmo perigo.
Tendo como companhia o João
cozinheiro, o Barros foi caçar, ao fundo da pista de aviação, onde abundavam
muitas codornizes que estavam na fase da nidificação e, passados uns minutos,
foi vista uma codorniz, empoeirando-se no chão.
Furriel, olha alí uma
codorniz, está a vê-la, avisou o João Padeiro?
O Barros observou o chão e
viu uma codorniz, muito imobilizada e com a arma carregada, disparou um tiro e,
passados segundos, uma codorniz levantou , para o meio de um canavial.
O João apreensivo e moralizador com o resultado
do tiro, disse ao Barros que se esquecesse, pelo menos, feriu a codorniz que
supostamente, tinha caído no referido canavial, animou o seu amigo.
Os dois caçadores tinham
percorrido vinte metros e, mais
um pouco adiante, o João gritou a “sete foles”:
- Furriel, olha estão duas
codornizes ali mortas com o seu tiro!...
O Barros nem queria
acreditar no sucesso da sua caçada e, provavelmente, estava um casal de
codornizes juntas, e o tiro atingiu-as sem o Barros se aperceber e estariam
mais algumas nesse bando, que fugiram esvoaçadas para o citado canavial.
O furriel nem deu mais um
passo para a frente, regressou com o seu amigo ao quartel, com as duas
codornizes presas ao cinto do camuflado, dando a transparecer que era um
autêntico caçador, mal sabiam os outros militares que aquela ridicula”matança”
fora obra do acaso…
Os Alferes Figueira e Felício felicitaram o
Barros pela caçada, com o Domingos Oliveira, do 3º grupo de combate, a
oferecer-se para as depenar, com a intenção de comer uma mas, o Barros já
“militar sabido” das manhas dos soldados, agradeceu a gentileza e foi ele mesmo
depená-las e os cozinheiros Eduardo e Rochinha prepararam o repasto,
limitando-se a “comer” o cheiro delas…
Na messe, o Barros deliciou-se com as duas
codornizes cozinhadas e deu duas perninhas, aos amigos Elias e Mendonça, uma a
cada um, porque não dava para mais…As perninhas dessas infelizes aves tinham
mais osso que carne…
O Sousa e o Vieira, Vago-Mestre,
tentaram provar o aperitivo mas o Barros apenas lhes deu um pouco do molho que
deslizou sobre o arroz com salsichas….
Foi melhor que nada!
Ex-Furriel Miliciano
Carlos
Barros
Guiné-Bissau- Quartel de Nova Sintra 1973
A
televisão a” gatinhar” em Esposende
Dia
Mundial da Televisão
O Dia Mundial da Televisão foi comemorado no
dia 21 de novembro, sendo proclamado em 1996 pela Assembleia Geral das Nações
Unidas, tendo como primaciais objectivos promover o intercâmbio mundial de
programas sobre a Paz, Segurança, Desenvolvimento Económico e questões sociais
e culturais.
Em 17 de dezembro
de 1996, já com o período do Natal a “bater à porta”, a Assembleia Geral das
Nações Unidas (A.G.N.U.), na Resolução 51/205, decidiu proclamar o Dia Mundial da televisão em 21 de novembro,
uma iniciativa considerada de grande impacto das Comunicações geotecnológicas
no cenário mundial.
A Televisão
Portuguesa. RTP, Canal Estatal, iniciou as suas emissões experimentais a 4 de setembro
de 1956, na Feira Popular em Lisboa, passando a 7 de março de 1957 às 21:30 a
emissão regular e a RTP possuía regras
próprias que outros Países não dispunham, porque Portugal tinha os Meios
de Comunicação Social , sob o controlo
implacável da Censura e só a queda do Estado Novo, a 25 de abril de 1974
concedeu uma maior liberdade e, por consequência, um certo grau de independência da sua
Programação.
Em 1957 a televisão veio despertar muita
curiosidade em Esposende e por todo o País em geral e nesta vila, banhada pelas
águas serenas e despoluídas do Cávado,
poucas casas dispunham de televisão sendo
instalada publicamente, pela primeira vez, na Casa do Povo de Esposende que funcionava
nas tardes de sábados e domingos.
O senhor Costa,
residente em Perelhal-Barcelos, era um
funcionário da Casa do Povo , homem extremamente zeloso e amigo das crianças, e
quando aparecia nessas tardes para abrir a porta, inúmeras crianças esperavam-no para verem
televisão geralmente desenhos animados-Gato Félix…- ou filmes de “Cow Boys”
muitos apreciados pela criançada da ribeira que recebiam “formação” nesses
filmes para as guerras norte-sul…
A televisão
também era vista, por alguns ribeirenses, na Casa Losa, que vendia televisores, e o
“maralhal” à socapa, espreitava pelas portas mas, eram sempre
visões rápidas e fugidías sobre o controlo e condescendência da D. Amélia Losa
e dos seus filhos, Manuel, Toninho e
Alexandre Losa.
Na Casa de Pasto do Torres, mais tarde,
explorada pelo senhor Licínio, na actual rua Nossa Senhora da Saúde, no local
onde está instalada a Biblioteca Manuel
Boaventura, aos sábado e domingos, pagavam-se cinco “croas” de rebuçados e
entrava-se para se ver no “ecrã mágico”
uns filmes e alguns escassos
jogos de futebol geralmente internacionais.
O dinheiro era
escasso e alguns proventos da rapaziada, vinham das “receitas” dos jogos de
futebol na ribeira onde se jogava a um
escudo ou mesmo a cinco croas, o que era raro…Uns recadinhos a alguns
comerciantes de Esposende e a venda de jornais e papelões velhos e mesmo algum
ferro velho, garantia algum pecúlio financeiro , amealhando-se, deste modo,
dinheiro para a Festa da Senhora da Saúde : carrinhos eléctricos, “cadeirinhas”,
matraquilhos ou na compra de bolas e simples brinquedos- espingardas, pistolas
de fulminantes, pandeiretas, espadas, arcos e flechas…- vendidos nos bazares do
Souto da Senhora da Saúde
Em 1962 (época
de 1961/62) realizava-se, no dia 2 de maio, a sétima final dos Clubes Campeões Europeus,
entre o Benfica, treinado pelo “Magiar”
Bela Guttman e o Real Madrid, treinado por Miguel Munõz e os ribeirenses, mais
afoitos e ativos no futebol da ribeira, juntaram umas “croas”-patacos- e foram
ver essa final na Casa de Pasto do Torres
e após o pagamento dos rebuçados, lá entraram todos entusiasmados, subindo umas frias escadas de
pedra para se sentarem, no primeiro andar, nuns longos bancos “corridos” e
mesmo no soalho esburacado do chão, lavadinho com água e sabão amarelo comprado
na mercearia do Abílio Coutinho, no Largo Rodrigues Sampaio ou no Francisco
Areias..
Com a sala cheia
de crianças e alguns adultos, houve alegria e gritaria a “rodos” já que o Benfica ia marcando golos
com o Eusébio em grande nível, marcando 2 golos - 64´e 69´- apesar dos calafrios iniciais com o Puskas a
marcar 3 golos pelo imponente Real Madrid (1-0, 2-0; 2-1; 2-2; 3-2: 3-3; 3-4;
3-5 final para o Benfica).
O todo poderoso
Real Madrid de Araquistain, Gento, Tejada, Di Stéfano e de Puskas foi
justamente “humilhado” pelo Benfica de Costa Pereira, Germano, Coluna, Águas e
Eusébio entre outros briosos e heróis jogadores.
No final do
jogo, foi a festa e a correria para as casas porque o jantar, quando havia,
estava na mesa ou no sonhos dos meninos…
Estávamos no tempo dos “cromos”, dos
“papeizinhos” de jogadores que eram vendidos na Casa de Pasto Marino, na Loja
da Locádia e no Zé Arménio. Jogava-se
futebol na Ribeira, Junqueira, campo do Pinto ou do Emilinho a “papeizinhos”, uma espécie de “nota” que se
pagava aos vencedores… Não havia árbitros nem “VARs” e tudo corria bem, sempre
com discussões e ameaças mas, não passava disso…
Com o “andar do tempo” a televisão em
Esposende instalou-se nas casas e hoje é
raro o lar que não tenha um aparelho de televisão dotado de inúmeros canais e com outras imensas potencialidades informativas, recreativas e
culturais, onde o vínculo comercial é
bastante utilizado.
No dia seguinte,
3 de maio, houve logo no Estádio da Ribeira, um Real Madrid-Benfica, num “faz
de conta” e pelo Benfica improvisado com as equipas formadas-escolhidas- pelo
Tachi e pelo Carlinhos da Jandira e no final do jogo, tinha de ganhar o Benfica
como veio a acontecer já que nessa equipa jogavam os melhores jogadores da
Ribeira - Armindo Murraca, Arrebita, o Piolho, Augusto da Galga, Paulo Gatinho, Luizinho,
Tarrio, Carlinhos, …
Mais tarde, organizaram-se vários encontros, no Estádio
da Faustina, entre as equipas do Zé Feliz e do João Café, dois grandes
selecionadores da década de sessenta.
No final, na ideia dos jogadores do Zé Feliz,
quando se ganhava , havia a esperança de comer umas iscas ou bolinhos de
bacalhau ou uma posta de bacalhau frito com uns nacos de sêmea e, que por
vezes, acontecia…
Sem as atuais,
tecnologias as crianças e o jovens de Esposende, das décadas se cinquenta,
sessenta e setenta, brincavam felizes e
o pião, a corda, os jogos, o botão, a afunga –fisga-,o gancho com a gancheta, a motinha, as caricas, o jogo ao
prego, as corridas de ciclismo com as pasteleiras, os mergulhos no
rio-escadinhas-, os assaltos aos ninhos, pomares, cenouras, nabos de Gandra,
tudo isto e muito mais, alegravam as crianças desse tempo, muitos
deles-pescadores…- abandonavam a Escola, para trabalhar…
Nesse tempo, a
nossa sorte, foi não existir pandemia caso contrário, seriam crianças
“confinadamente infelizes” . Havia sim , outro
COVID 19 (Crianças de Ontem, Vivas, Irriquietas
e Despachadas, 19 …50,…60,…70…) num tempo quase “cósmico” onde se inventavam
brinquedos e se criava a felicidade, com a imaginação e a fantasia do
maravilhoso infantil.
Eu, como criança, que vivi nesses tempos difíceis, numa
sociedade economicamente e socialmente carente, onde o analfabetismo e a “incultura” predominavam e “Saber ler e
escrever” era uma dádiva dos céus, para muitos meninos e meninas desse tempo,
algumas destas, não brincavam porque tinham de apanhar isca para vender aos
banhistas ou apanhar sacas de plástico no final da feira quinzenal de
Esposende, para serem vendidas na Lota , junto ao Salva-Vidas, para pôr o peixe
que os pescadores vendiam na “ arrematação”. Quando “licitava” o peixe à
peixeiras de Esposende, dizia o divertido
Tio Sampaio às peixeiras:
- “Badalhocas, quereis o peixe de graça, suas p….as…”!
Era a luta pela sobrevivência no rio, mar, no campo, no monte, no pinhal, nas
feiras, nas lojas, nas tascas , nas mercearias e com um “mar cão”, os
pescadores ficavam em terra, socializando-se nas muitas tascas/tabernas que se
espalhavam por Esposende, contando as suas
histórias e algumas peripécias da
vida do domável rio e no indominável mar.
Todas estas e
muitas outras histórias e vivências, deveriam ser visionadas na Televisão, num
dia de nevoeiro, homenageando este Dia Mundial da Televisão, em memória das
gentes de Esposende.
Calcorreando
os corredores da “história”…
Terminado o Curso na Escola Normal do
Porto (Antigo Magistério Primário) o
nosso amigo Lima, recém formado, esperava pela colocação e, quem tivesse obtido
uma boa nota-Classificação/habilitação-, o trabalho estaria mais acessível,
provavelmente numa Escola nos “confins do mundo”, onde a “civilização estaria
adormecida” ou teimava em hibernar…
O Lima, já professor encartado/diplomado, foi
tomar o seu pingo ao café Nélia servido pelo simpático e sempre sorridente,
João “Tamanqueiro” ou pelo Benajamim “Come croas”. O verão estava na despedida
e, inopinadamente, à entrada deste
estabelecimento, apareceu a sua mãe Jandirinha com uma carta na mão, bem
apertadinha. Era o pronúncio de uma novidade- trabalho- , missiva há muito
tempo esperada…
Ainda se podia frequentar os
cafés com os amigos e não se augurava ,
na altura, o terrível surto
epidémico actual e o COVID 19 morava nos sonhos dos homens.
O Lima, muito expectante, abriu o envelope e
pensou logo que devia ser a sua colocação numa Escola, um primeiro passo para o
“mundo do trabalho”, como docente e não se enganou…
Dentro do sobrescrito,
estava um Alvará, já com o destino marcado: Escola de Asnela, freguesia de
Riodouro, Cabeceiras de Basto….O dia vinte e cinco de outubro de 1979 marca o
princípio de uma aventura em terras de Cabeceiras de Basto, numa das “aldeias”
da freguesia de Riodouro, umas das maiores do País, em termos de área …
Por força do destino, o professor Abreu,
grande amigo do Lima, também foi colocado nessa mesma Escola e ainda bem,
porque reencontrou-se uma dupla de amigos de infância, clientes assíduos de aventuras
da ribeira e do rio Cávado.
O senhor Pilar, um “velho e solidário” amigo
do Lima, com o seu largo chapéu, homem de espírito extremamente bondoso, deu
boleia no seu Austin, a esta “dupla”, e lá foram com destino a Asnela ,
percorrendo a estrada das “seiscentas curvas” da Póvoa de Lanhoso... Asnela, tinha
um acesso difícil, um caminho ou melhor, uma espécie de “estrada paleolítica”
esburacada, lamacenta e bastante estreita. Fez-me relembrar, as picadas e os
estradões da Guiné mas, sem capim e sem minas…
Após a
visita à Escola de Asnela os dois professores neófitos, ficaram instalados na vila
de Cabeceiras de Basto, na Pensão Vilela onde pernoitaram, um pouco desanimados
com as péssimas condições de alojamento e trabalho que presenciaram.
No dia
seguinte, o Lima foi ver a Escola
Primária e ficou absorto e estupefacto ao olhar para aquele “edifício” que
parecia arrasado por uma bom “napalm” com o telhado caído, traves podres, entrava água por todos os
lados, a porta tinha um ferrolho bloqueado e a fechadura estava enferrujada
até à medula… Os dossiers dos alunos
encontravam-se espalhados pelo chão e pelas carteiras repletas de caruncho e os
bancos chiavam como “ratos” enraivecidos…Para ter acesso à “escola, existiam dois degraus , “ornamentados” com
musgo, com garantia de queda…
O insatisfeito e revoltado Lima, falou com o
senhor João, o “Homem-Grande “ da aldeia e disse-lhe que ia embora e não aceitava
a escola, afirmando que era um atentado à dignidade dos alunos e dos
professores.
No dia seguinte, o Delegado Escolar Professor
Artur tomou conhecimento das condições da Escola tendo ido, com a sua Renault
4, observá-la com o professor Lima, e reconheceu que de facto, aquilo parecia
um “palheiro” e impróprio para ser utilizado e decidiu arranjar outro local.
Uma “nova/velha” escola foi encontrada, numa
casa, com divisões de madeira ressequida com um telhado com “ar condicionado”
e, por debaixo, havia um curral de vacas e bois, que no Inverno funcionava como
uma improvisada “salamandra” mas, como é natural, todas as manhãs, para se
iniciarem as aulas, a dona do gado tinha que o retirar para se deslocarem para novas pastagens e, deste modo, os alunos já
não ouviam a orquestra sinfónica dos muares das vacas…
O leite escolar era serviço em pacotes de
litro e ainda não havia as embalagens individuais, fervido numa grande panela
na Escola e, no final das aulas, os professores levavam essa panela para casa
para evitar visitas dos ratos que eram atraídos pelo cheiro do leite, o que
acontecia no início dos primeiros dias de aulas. Era a caça aos ratos que
detetados, fugiam em várias direcções para os seus aposentos-buracos/tocas-
A casa
de banho da Escola, era um cubículo de madeira, com uma porta chiadeira onde
havia um buraco redondo adaptado para as descargas dos excrementos.
Naturalmente, o cheiro espalhava-se pela escola, num ambiente ecologicamente
pouco agradável mas, era o que havia! Estavamos nos inícios da “pégada
ecológica,” tão badalada nos dias de hoje…
No final das aulas, os professores percorriam
a pé, desde Asnela a Cabeceiras de Basto, uns longos treze quilómetros, debaixo
de calor, chuva, nevoeiro, geada intensa, frio e de outras intempéries
brindadas pelos deuses do Olimpo, nem sempre afáveis…
O Conselho Escolar realizava-se, mensalmente,
em Leiradas e lá iam os inditosos e
alegres professores por montes e vales até
uma outra escola, sempre a pé, fintando as pedras e as poças de água…Nos dias
de chuva intensa, estes “aventureiros”
tinham de andar por cima dos muros, para fugirem às poças de água e aos
regueiros que nos brindavam com as suas cristalinas águas. Algumas pegas e
gaios do denso pinhal, testemunham essas
caminhadas destes dois ”bandeirantes”, que todos molhadinhos lá chegavam ao seu
destino onde uma colega, desterrada dos Açores, o esperavam para a reunião
semanal.
O Lima, com os seus conhecimentos de
pedagogia e metodologia e de didáctica fresquinhos, ia partilhando os seus
conhecimentos nos Conselhos Escolares vizinhos, sempre como convidado de outros
professores que “respiravam “ares de aposentação”. Era uma nova “aragem de
mudança e de inovação pedagógica”, sempre bem recebida pelos colegas e apraz-me
registar as maravilhosas professoras que trabalharam com os colegas do Lima e do
Abreu, relembro-me as professoras Augusta Gonçalves, Luísa Queirós, Sameirinho,
Infantina, Ana Maria…
O Lima e o Abreu tinham uma casa alugada em
Asnela, por quinhentos escudos mensais mas, ficar lá, sem água e sem luz , não
era tarefa fácil de suportar já que estavam
justamente habituados, a melhores condições de vida em Esposende. O Lima, levou uma vela de
estearina, comprada na Casa Braga, que foi colocada na cabeceira da cama e,
como leitor militante e assíduo, releu umas páginas de um livro sobre pedagogia
Moderna, Edição Brasileira (Globo) e, no dia seguinte e, ao fim de meia hora, ardiam-lhe os olhos…
Numa segunda-feira, o Lima, confessou ao seu amigo Abreu:
-Não, nunca mais fico em
Asnela, porque ir para a cama às 8 horas da noite não dá, nem tão pouco há um
café neste lugar…Que saudades da Nélia, da Havaneza e da saudosa Primorosa ! Se
houvesse uma tasca como a da Nazaré ou do Barrigana, como em Esposende, sempre
dava para comer uma sande de chouriço ou de marmelada, desabafou o Lima para o
seu amigo Zé Pilar, cujo pensamento estava em horizontes siderais….
À povoação de Asnela, o
padeiro vinha um ou dois dias por semana e não existia qualquer mercearia ou
mesmo “tasco” para se beber um simples café ou pingo.
Diariamente, estes dois
“caminhantes” percorriam 6,5 kms para cada lado até chegar ao destino, Escola
de Asnela e quando chegavam à Pensão estavam mais mortos que vivos…Por vezes,
apanhavam uma boleia num carro de bois ou num camião da EDP que, na altura,
estava a instalar postos para a eletrificação da Aldeia e lá vinha o Lima,
sentado nos postos de madeira, com o “rabo” massacrado pelos solavancos, enrolado
no emaranhado dos fios de eletricidade e as ferramentas dispersas nas traseiras
do camião saltitavam como gafanhotos”tontos”. O amigo Zé também era um dos “clientes” dessas inopinadas e bem-vindas boleias , sempre eram uns quilómetros poupados a pé…
O professor Artur, Delegado
Escolar de Cabeceiras de Basto, pessoa gentil, sempre compreensivo e de uma extrema cortesia tinha
informado os professores que iam construir uma escola nova que estaria pronta no
final do ano letivo e aquilo parecia um milagre mas, infelizmente, já não seria
para o tempo destes dois esposendenses!...
A Escola Primária foi
construída, equipada com mobiliário moderno - mesas, cadeiras e armários- e no
final de maio estava prestes a ser inaugurada…
O professor Abreu estava de
atestado médico e o Lima pensava para os seus “anjos da mente”:
- Uma escola nova e eu a dar
aulas numa escola velha, não pode ser!..
Ganhou coragem, respirou
fundo, pediu as chaves a um trabalhador responsável pela construção da escola e
tomou uma ação revolucionária: Pegou nos seus alunos e enfiou-se na Escola nova
depois de limpar o imenso pó que havia nas mesas e teve mesmo que exterminar
centenas de moscas com um pano do pó, comprado na Feira de S. Miguel, porque
“mata-moscas” era um recurso tecnológico que não existia na altura…
O professor Lima trabalhou “clandestinamente”
na nova escola e os alunos “viveram” momentos aprazíveis com aquelas condições
com o equipamento escolar novo, apenas a “Caixa
Métrica Escolar” cheirava a bolor, da muita humidade que acolheu no “seu
ventre”.
Quando o Lima ia à Delegação Escolar falar com
o professor Artur, este Delegado muito atenciosamente dizia-lhe:
- Colega, para o próximo ano escolar, vamos inaugurar a nova Escola e
bem merece, assim como os seus alunos, e terá outras condições de trabalho! O
Lima, fazendo-se de ignorante e cúmplice, ouviu com atenção esta informação
muito estimulante e mal ele sabia que este professor já tinha inaugurado a
Escolinha…
Ainda hoje, o Lima não sabe,
se o professor Artur sabia desta ação revolucionária e se soube, fez bem
calar-se…
Os professores Lima e Abreu, nesta aldeia de
Asnela, foram extraordinariamente bem recebidos e ajudados pela população,
especialmente pelo senhor João e sua esposa D. Celeste Moita que fizeram das
“tripas coração” para ajudar esta dupla de professores, oferecendo –lhes hortaliça,
leguminosas, batatas, cenouras, carne de
porco e mesmo garrafões de vinho que ,
naturalmente, se estragavam – e a “lezíria do vinho testemunhava isso mesmo…-
já que estes professores bebiam mais água que álcool, nas raríssimas vezes que
almoçavam na casa desta recôndita
Asnela. Como “parecia mal” não aceitar
estas ofertas, lá teríamos que receber
estas lembranças, evitando a ”mancha
da descortesia”!...
Um dia, chegou a informação à Escola que o
Inspetor ia fazer uma visita de inspecção, já em pleno inverno, e de facto, foi
mesmo mas, não chegou a alcançar a
Escola porque o seu carro ficou atolado
de lama no estradão de Asnela e conseguiu, com esforço, fazer a marcha atrás e
não teve, futuramente, mais “apetite” em fazer novas inspeções ao trabalho dos professores…
Em Asnela, terra verdejante
e e pacata, estes dois professores, já “calejados em resiliência”, permaneceram
vinculados a esta Escola, até ao dia 30 de Setembro de 1980, depois do
professor Lima ter feito uma curtíssima” Comissão de Serviço” na Escola de
Teixugueiras em 1979.
Asnela, uma aldeia que ficou
no coração destes dois jovens – na altura…-professores, apesar das péssimas e
desumanas condições de trabalho aqui
descritas contudo, aquela maravilhosa população, tornou a vida mais fácil a
estes dois docentes que acabaram de fazer mais uma “Comissão de Serviço” em ambiente de paz, após terem vindo das ex-colónias de Angola e
da Guiné, em ambientes de guerra.
Da “Escola da Guerra”, a que foram obrigados a frequentar, passaram
para a “Escola da Paz” ,
semeada com aquilo de que constitui o
melhor do mundo, que são as CRIANÇAS…
Nota:
Podem acreditar, nesta
descrição que é genuinamente verdadeira porque eu, Carlos M. de Lima Barros e o
meu amigo, José Abreu do Pilar, passamos
por esta experiência e hoje desfrutamos de uma merecida aposentação, como muitos
dos nossos colegas.
Texto dedicado ao professor Artur, já falecido, Delegado
Escolar de Cabeceiras de Basto, e a todos os professores que trabalharam com
ele na Delegação Escolar.
Uma palavra de apreço para a
Autarquia de Cabeceiras de Basto pelo
apoio dado na construção da nova Escola.
Carlos Manuel de Lima Barros
Esposende, 26 de Janeiro de
2021
CANTINHO DOS LOBOS DO MAR.
CANTINHO DOS LOBOS DO MAR
por Carlos Barros
“Tiro aos vidros”
Esposende despertou pela manhã, com os sinos da Matriz a dar as sete horas
matinais.
Já em pleno julho, as crianças fora da
escola, gozavam as suas férias tão
desejadas para se deleitarem na ribeira com os seus varais, a sua relva
despenteada e os juncos abanando como que acenando à miudagem para os levarem
até às pocinhas do rio para se encherem
de lagostas para o repasto matinal.
Na rua Conde de Agrolongo, o Quim
Tripas-Joaquim Eiras Gonçalves- já afinava a afunga e enchia os bolsos de godos,
apanhados nos areais da praia ou nos montes de areia das casas em construção.
A Rua 31 de Janeiro, o João Papinhas-João
Adriano- fugia pela porta fora, à socapa
da mãe porque tinha combinado um encontro com o Quim Tripas, no matadouro para
estudarem mais uma das suas aventuras:
tiro aos vidros…
Os dois comparsas, observaram as janelas do
matadouro, sempre atentos ao Zé da Vila que guardava as instalações, e
começaram os preparativos, recheando os bolsos de godos e reforçaram a pelica das afungas, feitas, com
paciência por estes dois rapazinhos irreverentes, com as borrachas de “cambras
de ar” dadas pelo senhor António Fandino que apreciava muito estes dois “trutas
irreverentes”.
Ao passarem pela tardinha, na Rua Direita, pela
garagem do Fandino, estes dois aventureiros iam em corrida acelerada, olhando
para trás…
Rapazes, o que é que
vocês vão fazer com as afungas,
gritou o senhor António?
Já sei que vão para a
vadiagem seus malandros, concluiu o Fandino para o João e o Quim Tripas que corriam
como galgos, atrás das lebres…
Pela tardinha, os nossos heróis aproximaram-se
do muro do matadouro, tomando posição de disparo e o desafio era fazer um
buraquinho redondo, sem partir o vidro.
As primeiras
“afungadas” do Quim Tripas partiram logo dois vidros que se estilhaçaram no
chão.
O João Papinhas não quis ficar atrás e com
dois disparos, mais dois vidros partidos, perante o delírio do Quim Tripas que
abanava a cabeça de contentamento...
Os melros cantavam
nas árvores do campo do serralheiro, anunciando a noite que se aproximava
vertiginosamente, com o sol a dizer o “último adeus” nos limites da restinga, o
grande braço de areia que aconchega as
águas do nosso rio Cávado e do gigante Oceano Atlântico.
Seguiram-se mais disparos e passados
minutos, as janelas tinham quase todos os vidros partidos e os dois “mariolas”,
regressaram ao Largo dos Peixinhos, com a missão cumprida, para lavar as mãos no lago e descansarem um
pouco nos bancos ripados avermelhados
do jardim.
No dia seguinte, o Zé da Vila deparou-se com o
desastre no matadouro e começou as suas investigações para apanhar os
“criminosos”, falando com a vizinhança da central.
O Virgílio, “O parafuso” que estava nas redondezas do matadouro tinha
assistido às fisgadas do Quim e do João e denunciou-os à GNR e os autores da
proeza e o denunciante foram chamados ao posto, no dia seguinte, para prestarem
declarações.
O cabo da GNR olhou para o trio e perguntou
quem é que tinha partido os vidros do matadouro sob gestos ameaçador do agente Oliveira.
O Virgílio respondeu de imediato que tinha
sido os seus dois amigos e estes confessaram o crime mas, a “coisa” não ficou
por ali…
O João Papinhas disse
ao GNR que o Virgílio também tinha partido os vidros, e o Quim Tripas confirmou
a denúncia e logo aí o “caldo ficou entornado…”!
Meus amigos, para não apanharem umas
vergastadas, os vossos pais irão pagar os estragos e vão ser informados disto.
O Virgílio ao sair do posto, sacudiu os calções de ganga cheios de serrim, perante
o olhar ameaçador do João Papinhas e do Quim Tripas, e saiu furioso em direção
a casa, dando a conhecer ao pai do acontecimento.
O Virgílio, de recompensa, ainda levou umas
“lostras” do pai que não acreditou na inocência do filho e de castigo foi para
a carpintaria ajudar o pai e o Carlos Gaspar que estava fazer umas cadeiras de cozinha.
O Quim Tripas, olhou para o João Papinhas e
disse-lhe:
Por ele nos ter denunciado, o “Parafuso” pagou as “favas ao dono” e isto
não vai ficar por aqui…
Os
vidros foram colocados e pagos, com sacrifício, pela mãe do Papinhas,
Amélia contudo a mãe do Quim Tripas não tinha ”posses” para pagar as
despesas e, como castigo, o Tripas passou
alguns dias a engraxar os “ plainitos” dos GNRs .O pai do Virgílio colocou os vidros todos nas
janelas, do matadouro que ficou com
melhor apresentação embora, não por muito tempo porque estes
aventureiros mais cedo ou mais tarde, iriam fazer novos tiros ao alvo…
O Quim Tripas, no dia seguinte, partiu para
novas aventuras e deslocou-se para a junqueira para apanhar cobras de água para
as vender na Farmácia Monteiro por cinco
croas cada uma, e logo a pronto pagamento…
Com os agradecimentos
da Bertinha e do senhor Monteiro, sempre simpáticos e solidários, ao Quim
Tripas, pela caçada dos ofídios, estes foram colocados em frascos para
“experiências” e como “mesinhas”, contra o reumatismo e outras maleitas
físicas..
O Quim Tripas deu algum desse dinheirinho à
sua mãe e irmãs para reforço dos almoços e jantares já que os tempos eram de
“míngua”…
Com uns trocos, o Quim Tripas, sempre
descalço, foi à Havaneza comer uma sande e um galão, sendo servido, pelo sempre
desconfiado senhor Franquelim designado pela rapaziada da ribeira por
“calcinhas”…
O Quim Tripas teve um lanche de “rico” e
depois do repasto, pegou numa cobra que tinha numa caixa de fósforos e soltou-a
e alguns clientes começaram a fugir do café, derrubando algumas cadeiras e desviando as pesadas mesas da Havaneza,
perante o desespero do senhor Franquelim que
se refugiou dentro do balcão.
O senhor Zé Praia, com os seus graduados
óculos, que estava a jogar às Damas com o senhor Carvalho, relojoeiro, nem se
mexeu do lugar, tal era a concentração ao jogo.
O Quim Tripas pegou na cobra que serpenteava
pelo chão do café, meteu-a na caixa de amorfos “Quinas” e saiu em grande
correria pela porta fora porque temia que uma vassoura voasse em sua direção!
Estava
consumada mais uma das aventuras do Quim
Tripas, menino traquina, simpático, aventureiro, irreverente, ágil como um
leopardo, corajoso como um felino, e que conseguia sobreviver nesses tempos muito difíceis. Em Esposende,
proliferavam famílias muito carenciadas, onde a “fome” batia à maioria das
famílias esposendenses.
Muitas crianças só usavam sapatos aos
domingos e nos resto da semana, andavam descalços calcorreando ruas poeirentas
e empedradas e caminhos de terra batida.
O nosso Quim Tripas tinha o “seu Mundo de
Aventuras”, fazendo relembrar os livrinhos
que se vendiam na Primorosa e que tinham esse mesmo nome: MUNDO DE
AVENTURAS.
O seu preço era de dois escudos mas, a
criançada limitava-se a olhar para eles, colocados naquela montra da Primorosa
mas, os dois escudos eram melhor empregues
na compra de uma sêmea na Padaria beirão e de um naco de marmelada
comprada na Nazaré e no António do Sul
ou mesmo um pirolito ou laranjada “Canada Dry” que se vendiam na Lucas.
O Quim Tripas era mesmo assim, um menino,
agora distinto e respeitável homem, irreverente e sagaz, um lutador pela
aventura e que o “Pescador
de histórias” se orgulha em
recordar.
Uma
viagem atribulada…
A motora Filomena Antonieta,
foi a primeira motora que veio para Esposende, no ano de mil novecentos e
sessenta e dois, com uma tripulação de pescadores muito trabalhadores,
divertidos e “vinhaça” que se aproximasse deles, era “vinho evaporado”, num
abrir e fechar de olhos…
O João Careca era o mestre da
Filomena Antonieta, pescador experimentado e muito sereno, sendo a tripulação
constituída pelos esposendenses, Quico da Inocência, irmão do João Careca, Morrossol,
com a sua gravata garrida e elástica, o Tone Pirata, Anselmo Saganito, A.
Guimarães, Alfredo Muchacho, e o grande “ilusionista” Milo, também alcunhado de
“Rosas”, antigo guarda-redes do Leixões.
A Filomena Antonieta,
com os seus treze metros de comprimento era palco de muito trabalho e de
diversões com o Alfredo Muchacho, sempre a comandar as “tropas” com o seu
excelente espírito de humor e de oportunas malandrices.
Era habitual, durante o ano, separar “meia parte” do pescado da
motora, para custear as despesas para alguns passeios a Lisboa-Mafra-Nazaré…- e
a outros locais ,(volta ao Minho…) para que a “companha” se
distraísse um pouco, fazendo descansar o corpo e espírito, “corroído”
pelas longas e cansativas saídas para o mar.
No dia vinte e dois de
outubro, de mil novecentos e sessenta e sete, o João Careca organizou um
passeio a Lisboa, com passagem por Mafra e Nazaré. Após umas passeatas pelos
cafés/tascas no campo das cebolas , foram todos pernoitar à Pensão Varandas ,
curtir um pouco das “copaças” com uns tremoços e amendoins, de sabor bolorento,
a acompanhar…
O Morrossol, sempre aperaltado, tinha pedido, ao João Careca, no primeiro
dia na capital, se o autorizava a ir ter com uma tia e prima na baixa lisboeta
e o mestre, começou a esfregar a boina desconfiado mas, lá lhe deu autorização
desde que, no outro dia, estivesse junto à Pensão Varandas para a viagem de
regresso.
O Tone Pirata acenava para o senhor João para não o deixá ir porque nunca
mais regressaria, lembrando-se das “partidas”-aventuras- anteriores do
Morrossol.
O Tio Alfredo, com ar
tristonho, sentado num muro, junto à Pensão, desabafou:
- Adeus amigo Morrossol, nunca mais
te vejo!...Vai “alma perdida”….
No dia seguinte, quando os “turistas” iam partir de Lisboa, lá estava o
Morrossol, com dois grandes embrulhos, com frascos de perfumes e
roupa branquinha, mesmo a seu gosto …
O Tio
Alfredo, não resistiu, abeirou-se do seu amigo e começou a vasculhar os sacos,
procurando alguma garrafinha de tinto ou uma cerveja perdida mas,
infelizmente, nada disso existia, perante o desespero do Tone Pirata e do Tio
Aníbal Mó que tinham a garganta seca!
Já
em viagem de regresso, a velha e ferrugenta carrinha do Aníbal Mó, sócio da Motora
Maria Antonieta, que transportava estes pescadores de Esposende, numa curva
teve um pequeno despiste e avariou-se e gerou-se algum pânico entre
os “turistas”.
O
Milo foi projectado pela porta fora e caiu desamparado, com uma lata de óleo,
rasgando as calças, caindo num valado, cheio de urtigas. Esteve a
coçar-se durante muito tempo, com comichão, com o Tio Alfredo Muchacho a
rir-se perdidamente. O Milo, assustado, estava vermelho de tanto se
esfregar.
O Morrossol, dentro da carrinha, gritou:
- Irmãos estamos perdidos, vamos a
pé para Esposende por causa desta carripana maldita!
Todos
saíram da carrinha, e o Anselmo, com o susto que apanhou, cada vez
gaguejava mais, apesar do apoio do Tone Pirata que só pedia para pararem na
próxima tasca para beber uns valentes “ganázios”- malguinhas- de
vinho.
O Alfredo Muchacho, sempre na borga, pôs-se
ao volante, sem saber conduzir e destravou a carripana que começou a deslizar e
só parou junto a um muro, coberto de musgo e trepadeiras, que
amorteceu o choque.
Entretanto, a porta da
carrinha, que estava segura com cordas e arames, soltou-se e foi projectada,
deslizando sobre um extenso relvado, junto a um barracão de tijolo que se
encontrava abandonado apenas, dois gatos vadios saltavam entre ervas
verdejantes e dois tijolos abandonados...
O Milo que não bebia bebidas alcoólicas e
gritava a “sete foles”:
-Quero um pirolito, estou com uma
secura!
Entretanto a carrinha, com O Aníbal
Mó ao volante, já bem entornado, começou a trabalhar e logo a companha
enfiou-se dentro da viatura a caminho da Nazaré .
O Morrossol, de sapato branco,
gravata de elástico e casaco de xadrez, desviava-se do Alfredo Muchacho porque
este estava sempre a puxar pela gravata, esticando-a e largando-a, aleijando o
“caroço” ao infortunado Morrossol.
O Quico desesperado, olhava para o irmão João Careca e perguntava-lhe o que
iria fazer a estes “bebedolas” e, com a sua calma, o mestre olhou para ele e
disse-lhe:
- Vamos já para Esposende, e vamos
deixá-los na ribeira porque estou farto de aturar esta cambada, lamentava o
João Careca.
A carrinha em velocidade de cruzeiro, chegou a Esposende pela já madrugada, e parou
na ribeira, junto ao posto da Alfândega, com a intenção de os deixar lá, mas,
todos estavam despertos e saíram da viatura, cambaleando, em direcção às suas
casas onde as mulheres os esperavam com o caldo de farinha à mesa e uma
postinha de raia ou bacalhau frito.
Foi um passeio atribulado
mas, muito animado apesar das peripécias que tinham acontecido num passeio que
jamais poderia ser calmo porque o Tio Alfredo Muchacho, agitava aqueles jovens
e alegres pescadores que, apesar das brincadeiras, palhaçadas e maroteiras,
eram sempre amigos e bastante unidos na amizade e no trabalho.
“Pescador de histórias”
“O Toninho pedinchão”
O Toninho
“Anão” (António José Barros Neto) percorria, numa fase inicial, Esposende
lés-a-lés, passando a “pente fino”, todos os cafés das redondezas como a Havaneza,
Nélia e Primorosa e alguns tascos onde apareciam os “lavradores ricos” das
aldeias. O Toninho sempre na sua missão de peditório, ia pedindo a esmolinha da
ordem, com uma “carinha de meter dó” para melhor convencer os incautos.
O Toninho metia-se
nas camionetas da “Viúva”- Auto da Viação do Minho, Ldª- ou do Linhares-
Caetano Cascão Linhares- e pedia dinheiro aos passageiros ou dirigia-se para os
locais mais “lucrativos”, onde era pouco conhecido, como em Viana do Castelo e
Barcelos, aqui às quintas-feiras, dias de feira. Chegou-se a aventurar-se em
incursões a Braga mas, esta cidade era muito confusa para o nosso amigo
Toninho, como uma vez me confessou.
Um dia, ele
estava na mercearia/armazém e tasca do Abílio Coutinho, bebendo uma malguinha
muito à pressa, não vá o Carlinhos aparecer, que sempre lhe negava o vinho, e
meteu-se à socapa, dentro da Camioneta da “Viúva” que acabara de chegar para
entregar as encomendas no Coutinho, que era o local de recepção das mesmas. O
Lourenço com as suas “lunetas” já carcomidas pelo tempo, era o principal
distribuidor dessas encomendas: Farmácias Monteiro e Gomes…
Durante a
viagem para Viana do Castelo, o Toninho, que era muito pequenino, meteu-se
debaixo de um banco e permaneceu escondido durante toda o percurso, sob a cumplicidade
de alguns passageiros que o protegeram, já que o conheciam bem, doutras
“aventuras peditórias”.
A camioneta mal
chegou a Viana do Castelo, o Toninho saiu “disparado” do banco e foi em
direcção à marginal da cidade para percorrer os cafés no seu “afã” de
pedincha, visitando as “capelas do Loureiro”- tascas- que lhe iam
aparecendo pela frente.
No campo da feira,
entrou numa taberna e, com os bolsos recheados, mandou vir umas iscas de
bacalhau frito, dois trigos e a habitual tigela de vinho tinto carrascão, que
lhe soube pela vida. Naturalmente, não foi apenas uma tigela de vinho, outras
se lhe seguiram…
O Toninho dirigiu-se
pacatamente e a deambular, para o escritório das camionetas da “Viúva” e, com
tanto azar, perdeu-a e não havia mais nenhum autocarro para Esposende, perante
o desespero do Toninho que esbracejava e protestava contra tudo e contra
todos….
Bem, só tenho
uma solução, murmurava o nosso amigo para os seus “botões”!... O Toninho foi para
o cais de Viana para arranjar boleia numa motora de Esposende e, por mero
acaso, o Tio David estava a chegar do mar, com a sua Cláudia Cristina, motora
de quatro cilindros com um potente motor dinamarquês “Buick”, com a matrícula “ES 86 C”. O senhor David, olhou para o
paredão e disse para os seus tripulantes:
-Olha quem
está ali, é o Toninho Anão! Já deve estar “com os copos”….
Toninho, o que
queres, perguntou o mestre David, ao nosso “artista”, perante os olhares do
Milinho e do Tone Fifas.
Quero boleia
para Esposende senhor David, pediu o Toninho choramingando…
O mestre olhou
para a tripulação e meditou, numa rápida
reflexão.
É uma grande
responsabilidade levar o Toninho naquele estado e se cai ao mar, estamos
perdidos, confessou o senhor David para os seus tripulantes ….O Alfredo
Morrossol levantou o braço e disse:
Eu não quero
problemas porque o Anão não é de confiar….
O Tião
Saganito, o Agostinho e o Milo acenaram para o senhor David para deixar entrar
o Toninho para a motora.
Vamos
arriscar, disse o Milo, ameaçando o Toninho com uns “caroques”….
Toninho, entra
mas vais amarrado ao alador para não caires ao mar porque a mar está “alto” e
não quero arriscar, disse o mestre David
ao Toninho que cambaleava no convés, amarrado à casa do leme…
Ó Milo, guarda-me
estas moedas porque tenho o bolso roto, pediu o Toninho ao seu amigo! O mestre
David que estava junto a uma caixa de lagostas e lavagantes, olhou de lado para
o Toninho e disse-lhe:
Seu malandro,
nem em mim confias precisavas é que te pusesse ao mar!
Passadas umas
horas, depois de descarregado o peixe para a lota, a motora partiu com toda a
sua tripulação para Esposende e durante a viagem o Toninho dormiu
profundamente, nem a agitação forte das ondas, o acordava.
A motora Claúdia
Cristina “aportou” junto ao Salva-vidas, onde estavam os irmãos Miquelinos a
conversar sobre o jogo Norte-Sul em que os Sulistas , tinha vencido por quatro
bolas a uma em que o árbitro “Touca Branca” fez uma arbitragem polémica, como foi sempre do seu timbre….
O Toninho foi
desapertado das cordas do alador pelo Alfredo Morrossol e levado ao colo pelo
Tone Fifas, para o cais e o Milo entregou-lhe todo o dinheiro do peditório do
dia.
Quando menos
se fazia esperar, o Toninho começou a injuriar o senhor David e toda a
tripulação, afirmando que lhe tinham roubado o dinheiro, numa gritaria que
ecoou ao longo da Ribeira até à Alfandega Marítima de Esposende, onde se
encontravam o senhor Torres e o Lima, duas autoridades marítimas, -guardas- a conversarem à porta da Delegação, sobre os negócios da Teresa do Castelo que nesse dia, tinha
comprado muitos quilos de lavagantes e lagostas que foram pesados na loja do
Abílio Coutinho pelo Carlinhos que recebeu, como oferta, um pequeno lavagante,
que mais tarde, foi cozido pela Tia Alice
na máquina a petróleo e comido à mesa pelo Carlinhos e o “cheiro” ficou
para os tios…. O tamanho do marisco não dava para mais!
A Teresa do
Castelo, com o seu poderoso porte atlético, e com as suas pulseiras e cordões
de oiro a ornamentar os seus pulsos e pescoço, agradeceu à tia Alice e ao
Carlinhos pela pesagem e na sua carrinha, com o marido a conduzir, foi em direcção
a Viana do Castelo para deixar o marisco aos seus clientes.
No cais
pairava a confusão com a gritaria do Toninho que não parava de protestar, chegando
mesmo a pegar em “pilado” que estava num monte, junto ao paredão, atirando-o
para dentro da motora.
Seu vadio, seu
corrécio, para a próxima vez, anda-me pedir boleia que vais ver, ameaçou o
mestre David ao Toninho que foi
abandonando a ribeira, fazendo-lhe caretas provocadoras.
O Toninho
regressou, com sacrifício, à sua modesta residência, no bairro das Casas de S.
Vicente de Paulo e mal entrou em casa, pelo quintal, em passada “sorrateira”, guardou
o dinheiro debaixo do colchão de colmo, num dos quartos de dormir “colectivos” e
“caiu como um tordo”, ficando a dormir “até às tantas”…..
No dia
seguinte, o Toninho “Anão” já estava em forma e pelas onze da manhã, entrou na
Nélia e começou a pedir cinco croas ao Dr. Francisco Marques que estava a
engraxar os sapatos no senhor Guimarães, e a outros clientes de Barcelos e de
Braga mas, teve que acelerar porque o senhor João Tamanqueiro, empregado de
mesa, tinha-o detectado e a única
solução era a fuga para poupar as orelhas….
O Oliveira e o
Benjamim “Come croas”, empregados da Nélia, estavam a servir noutra zona do
café e não ameaçavam perigo para o Toninho. O Adriano, filho do senhor Adelino
das camionetes do Linhares, no Snack-Bar, chamou pelo Toninho, deu-lhe dois rissóis
de camarão e de bacalhau do dia anterior, na condição do Toninho sair dalí,
porque parecia mal pedir…
Com os rissóis
na mão o Toninho desapareceu e foi “atacar” na Havaneza mas, o Jerónimo não lhe
deu hipóteses e só lhe restou “imigrar” para uma nova viagem, agora para
Barcelos, sempre clandestinamente, sem pagar bilhete porque o Toninho tinha
sempre dinheiro, mas quando era preciso pagar algo, ele “nunca tinha dinheiro”.
Precisamente
no dia doze de maio de mil novecentos e oitenta e cinco, numa tarde trágica, o
nosso amigo caiu de uma “marquise”, no Bairro de Sucupira e “deixou-nos” para
sempre um acontecimento que entristeceu todos os esposendenses e a família em
particular. Todos nós reconhecemos que o Toninho fazia muita falta aos
Esposendenses porque era uma pessoa especial e “castiça” e pessoalmente, nunca aquele rapazinho, foi
mal educado para o “BÓIAS”, e eu que tive muitos e muitos contactos com este
amiguinho no café, no armazém-mercearia-tasco do meu Tio Abílio Curvão ou mesmo
em plena via pública!
Uma coisa é
certa: nunca lhe servi uma malga de vinho ao Toninho, apesar de me pedir muitas
vezes! Fui sempre seu defensor pelas boas causas e cheguei mesmo a dar-lhe
algumas explicações, quando estava na Escola Primária, tentando que ele regressasse
aos estudos mas, perdi e fui derrotado pela teimosia do Toninho porque a Escola
para ele, não era vida…
Carlos Barros
“A secura do Geno…”
O Manuel António Sousa Cruz,
mais conhecido pelo Taxi, batizado pelo ilustre Zé Feliz, nas suas vivências na
ribeira, no “estádio da Faustina” foi um jogador especial, tendo jogado no ESC, Marinhas, Vila Chã , Fão
e no Norte-Sul . A sua velocidade
ultrapassava a da bola, chegando mesmo, a desaparecer do campo, num jogo com o
Ronfe porque ficou “mergulhado” numa valeta, sendo pescado pelos calções pelos
colegas, depois do jogo ter sido interrompido pelo árbitro, que ficou espantado
pelo desaparecimento inesperado do craque Taxi.
Atualmente o nosso amigo Nelinho
pertence ao “Danças e Cantares das Marinhas”, tendo-se deslocado, em digressão
artística, cinco vezes à França e a vários pontos do País, chegando a atuar com
o seu grupo de Folclore, no Algarve.
Para além de jogador de futebol,
o Taxi foi pescador, com cédula Marítima, passada pelo tenente Tavares e pelo
Arlindo da Delegação Marítima de Esposende, tendo feito uma prova e mergulho e
natação, sendo aprovado sem entrar no rio, apenas molhando a cabeça, tendo
convencido as autoridades marítimas da época. O Taxi era um estratega peculiar
e na ribeira, nos jogos de futebol Norte-Sul, onde se jogava a cinco croas, o
nosso “mestre” armava confusão e ficava com o dinheiro ou escondia-o no capão
da bola de futebol do Zé Pancas.
O Taxi, como no futebol, era “ave” de
arribação e, como pescador, passou por
várias motoras: Cruzeiro do Norte-João Paquete-, Torrão-Berta Bicheza-, Mar
obedece a Jesus –Quico da Inocência- e 1º de Abril – Zé Bebado-,”Senhora do
Triunfo- Marco Filipe-motora Nova do Zé
Bêbado-, Pérola de Esposende- “Rabo do Chico”-, Senhora da Saúde-Manuel Reis-,
Pai Tirano-Tio Armando- e Galo Negro-Tone Galo-.
O Taxi esteve, como pescador, em
Sagres, Sines. S. M. Porto, Arrifana, Vila Nova de Mil Fontes, Viana do Castelo
e, naturalmente, em Esposende, conhecendo meio mundo e fez rir muita gente, com
o seu “singular sotaque”.
O Geno fez parte da tripulação do
Taxi e, numa bela tarde, com o sol a apertar, pelas quinze e trinta da tarde, a
secura invadiu os tripulantes da motora e não havia cerveja ou garrafões a
bordo da embarcação porque rapidamente desapareciam com tantos discípulos do
Baco, deus do vinho, existentes na motora.
Atita,
ainda te lembras quando andavas na motora do Zé Bêbado e, ao alar os “tróis”,
com um grande congro preso, pegaste no bicheiro e fisgaste a madeira da borda
da motora, perguntou o Taxi ?
Lembro-me, lembro-me bem, tu
precisavas era de uns valentes cachaços nesse lombo ameaçou o Atita que não
gostou nada da conversa.
Entretando na motora, ouviu-se
uma voz, de aflição:
Estou com a garganta seca, gritava, com rouquidão,
o Geno para os seus amigos, pedindo vinhaça…
O Taxi, tinha uma garrafa de
cerveja cristal, no porão e foi buscá-la para
matar a secura ao velho e amigo Geno que continuava a pedir
copaça.
Geno, meu irmão, tenho aqui uma
garrafa de cerveja que o meu irmão Pexixola me deu, disse o Taxi todo
solidário.
O Geno mal pegou na garrafa de
cerveja, meteu-a à boca e começou a gritar:
- Eu morro, eu morro, estou a arder por dentro, socorro,
socorro!...
O Taxi pensava que era falta de
oxigénio e pegou no extintor e despejou-o na cara do infortunado Geno, para
agravar ainda mais, a situação do “desgraçado”…
O Geno, então é que começou a
aumentar, em refrão, a gritaria, numa explosão de aflição.
O mestre da motora ao ouvir a
gritaria, saiu da cabine, escorregou nos langanhos das raia no convés, contudo conseguiu segurar-se e
deparou-se com o Geno quase desmaiado, espumando-se
pelos cantos da boca.
Taxi, o que deste a beber ao
Geno, perguntou o mestre da motora ao Taxi.
Dei “ceveja” comprada no tasco do tio Feliz, que
o meu irmão Pexixola me deu, e pus “ogénio” na boca dele, respondeu convictamente
e nervosamente o Taxi.
Desgraçado, vou-te matar tu deste ao homem
petróleo que estava na garrafa, no porão que era para pôr nas lanternas…
O quê, dei “pitólio” ao Geno, questionou
o Taxi tremendo por alguma bordoada que cairia no “lombo”…
O mestre da motora atracou a motora ao
cais e o Geno, fervendo a “muitos graus” e trasando a petróleo, e com a cara
toda branca da espuma do extintor, foi
transportado pelos colegas para o hospital de Viana do Castelo onde ficou internado
durante algumas horas, tendo alta no dia seguinte.
O Taxi andou fugido por umas horas da
tripulação da motora mas, depressa regressou porque tinha uma saída para o mar,
onde iriam largar redes ao camarão e a calma regressou ao barco que continuava
a cheirar a petróleo e, graças a uma nortada de sudeste que se levantou, o
cheiro foi varrido e a “ecologia” pairou na motora.
“Os irões da junqueira”
O Paulo Fá, ainda
criança, com os seus nove anos, comandou uma equipa de “marmanjos” para apanharem
irões, perto do matadouro e da junqueira. Estavam grossos, confessou ele aos
seus amigos.
Era preciso dinheiro
para comprar sêmea, “trigos”, e umas croas para se jogar futebol na ribeira a dinheiro e
um saco de irões, vendidos às peixeiras era oportunidade a não desperdiçar.
Pegaram em “varapaus”
e lá foi a criançada, comandada pelo Paulo do Fá para o rio e começaram, a
apanhar irões e, passado pouco tempo, a saca estava cheia, com as enguias a rabiarem
dentro da sacola.
O “maralhal”, todo
entusiasmado, lá foi vender as “enguias” a casa da tia Inocência.
Todos contentes, estas crianças que tinham
fugido à escola, nessa bela tarde de Verão, bateram à porta da peixeira, todos
sorridentes pela boa “safra” piscatória.
Entrem meninos, disse a tia Inocência, ponham
aqui os irões no chão-soalho carunchoso- para serem contados que eu dou-vos
cinco croas, uma pequena “fortuna “ para essa época, ano de mil novecentos e sessenta
e um.
Os irões foram
lançados sobre o soalho, para serem contabilizados mas, começaram o “bufar” e a peixeira gritou,
saltando aflita:
-Desgraçados, vocês apanharam mas foram cobras, respondeu a
mulher assustada.
Entretanto, a casa encheu-se de cobras por
todo o lado e até subiram para a cama do quarto do Zé, filho da peixeira.
Estava o caos semeado naquela modesta casa e
a rapaziada começou a fugir pela porta fora e só pararam na ribeira, deixando o
saco dos irões para trás.
A tia Inocência, com ajuda dos filhos,
conseguiu, com paus e uma vassoura, expulsar e matar a maioria das cobras outras
porém, conseguiram fugir para o quintal do “Zé Tolo”,( filho do Albano Laca) e
do Abílio Coutinho, para o meio do seu
tomatal.
O Paulo Fá olhou para o Manel e Tonó e
desabafou:
- Tão cedo não quero ir aos irões porque aqueles bufavam como
cobras!...
História contada
pelo Paulo do Fá, no dia 21 de janeiro
de 2013-01-21
junto à lota-Sul- de
Esposende, na presença do José Manuel e esposa Adelaide, Manel Nibra e
Ainho.
Carlos Barros
21/1/2013
Os dois esfomeados...
A motora “Mar obedece a Jesus”, com a sua tripulação- Rogério, Tone Passarinho, Agostinho, Tone Paquete, “Arrebita” e Quico - o mestre da motora- encontrava-se em Sagres, no ano de mil novecentos e oitenta e seis, na sua faina piscatória.
Uns jovens ingleses, dois rapazes e uma rapariga, encontravam-se a passear numa avenida, quando reconheceram os pescadores de Esposende, sempre barulhentos, que tinham ido beber umas “taças” na taberna, e abeiraram-se deles:
- Amigos, gostávamos de ir ao mar, podemos ir?
-O Tinocas prontificou-se a pedir ao Quico, que estava ao seu lado, se poderia levar os banhistas , que estavam numa colónia de férias , ao mar.
-O Quico, sempre disponível, acedeu ao seu pedido, combinando com os jovens estrangeiros, a hora da partida, para o dia seguinte.
A motora partiu pelas cinco horas da manhã, com os jovens no convés, descontraídos junto à casa do leme, onde o Quico, com a sua experiência e saber, tripulava a motora em direcção ao mar, para alar as redes. Os tripulantes conversavam com o “Arrebita” que dava recomendações aos jovens para não enjoarem. Percorridas umas milhas, o trio inglês já estavam com ar de enjoados mas, sempre sorridentes.
Chegados ao local, em pleno mar, os pescadores começaram a alar as redes, com o Pezinho mais a observar que a trabalhar…Após umas horas de “alanço” a motora encheu-se de tamboris, lagostas, peixes-galos, salmonetes , sargos, douradas e de outras variedades de peixes.
Meu Deus, tanto tamboril, gritava o Agostinho para o Tone Paquete, que era o cozinheiro no mar, enquanto que o Agostinho, era mestre de “culinária” mas, em terra.
O Tone Paquete olhou para o Quico, mestre sempre atento às agruras do mar, decidiu que o almoço seria arroz de tamboril para toda a “companha” e o Arrebita e o Tone Passarinho, esfregaram logo as mãos de contentes porque era o prato favorito deles.… O Tone pegou em três grandes tamboris, levou-os para a improvisada cozinha no convés, preparou-os e fez uma “arrozada” de tamboril cujo cheiro se espalhou pela motora, perante a alegria dos pescadores, já que a “barriga batia horas”…
O Rogério Chana, olhou para o Paquete e disse-lhe:
Tone, estes “estranjas” vão comer connosco?
Claro que sim, respondeu prontamente o Tone, que mexia o arroz que ia dançando ao ritmo das ondulações do mar.
Os ingleses foram servidos com o saboroso prato e começaram a comer, deliciando-se com o saboroso arroz.
Tone, eles vão comer mais arroz? Olha que eu e o Pezinho ainda não comemos, alertou o Rogério!...
Não faz mal que eles não comem mais mas, é melhor perguntares outra vez, respondeu o Tone Paquete.
Ò juventude “tanque iu” (Thank you) querem mais um prato perguntou o Chana!
Yes, more, more… !
Tone, “Yes” é sim , em português?
Seu “morcão” não sabes que é, respondeu o Tone ao Rogério…
Os jovens comeram mais uma pratada de arroz de tamboril, perante o desespero do Pezinho e do Chana que estavam a ver o “fundo da panela”….
E agora o que vamos comer Tone, pois estes “desgraçados” comeram-nos o arroz todo?
O Arrebita com a barriga cheia, já dormia na proa, ressonando ! Até as gaivotas, que estavam a comer tripas de tamboril, se assustaram…
O Tone Paquete, com a panela vazia, atirou-a pelo convés que deslizou até à proa, quase atingindo o Arrebita que continuava a dormir profundamente.
O Quico perante tanta confusão e desespero dos “esfomeados” olhou, da casa do leme, para os dois amigos que continuavam a resmungar e disse-lhes:
Pezinho e Rogério, em terra vamos comer ao restaurante porque os ingleses pagam…
O Tone Passarinho, o Agostinho, o “Arrebita” olharam uns para os outros e nem queriam acreditar! Vão para o restaurante encher o “bandulho” e nós aqui, lastimaram todos eles!...
O Quico apressadamente, saiu da motora “Mar obedece a Jesus” olhou para a tripulação e disse-lhe:
“Gude vai” - Good bye- amigos, acenou o Quico com o seu boné e fiquem a fazer a digestão do tamboril…
“Pescador de histórias”
“ O Trio” na cela…
Alguns jovens, com os seus quinze aninhos de idade, numa friorenta tarde de dezembro de mil novecentos e sessenta e oito, época natalícia, filhos legítimos da ribeira,- Toninho “Zurique”, Santos, Candinho e João Muchacho- estavam a jogar futebol, no caminho que separava as casas do Bairro de S. Vicente de Paulo, em plena rua de S. João.
No calor do jogo, o Ribeirinho acidentalmente, mandou uma bolada ao neto do Li e, depois de muito alvoroço, o Li -Alfredo Barros Lima, pescador mestre da motora Daniel José-apresentou queixa no posto da GNR de Esposende, tendo o processo seguido para o Tribunal já que o Li, teimosamente, não perdoou ao Ribeirinho, que se tinha “desfeito em mil desculpas”.
Os três amigos, afirmaram, no Tribunal de Esposende, que não tinham visto nada, contudo o “Caravelha”, como testemunha, tinha dito em tribunal que eles tinham visto tudo e que estavam a mentir…
Já dentro do tribunal, o Candinho começou a espreitar por uma “frincha” da porta da sala de audiências e, por mero azar, foi visto pelo “Garcia velho” que ficou possesso e furioso, e de dedo em riste, virou-se para o Candinho disse-lhe, num tom de voz ameaçador:
Ó seu vadio, vais para o xadrez e não vai demorar muito tempo…
O Candinho, descalço, tremia “como varas verdes” pois, possuía “cadastro” uma vez que , já tinha sido preso, por ser apanhado, a pescar à lampreia, num dia da estacada e, como castigo, foi condenado a “serviço comunitário” sendo obrigado a limpar o rio Cávado onde se amontoava o entucho das cheias. Claro que, o Candinho, não aceitou o castigo e foi parar à cadeia tendo afirmado que estava melhor preso que a trabalhar para o “tenente”…
O Adão, escrivão do tribunal, ia registando, na sua velha máquina de escrever “Olímpia”, todos os pormenores da ocorrência, organi-zando o processo para o veredicto final.
Depois da audição final, a mandato do juíz, os três ribeirenses fo-ram conduzidos, pelo sr. António carcereiro, para a prisão, por te-rem mentido.
Estiveram presos durante dois dias e duas noites e na friorenta cela, o Muchacho começou a chorar, dizendo que não queria morrer!
O Santos, passava o tempo a cantar o fado para se distrair e a Laura do Roto, que tinha uma loja perto da cadeia, foi fazer queixa ao carcereiro, senhor António, pai do Manel Maria da Ritinha Padeira porque não conseguia dormir com tanta barulheira. O trio foi avisado pelo senhor António mas, a irreverência era “fogo que não se apagava” com facilidade…
O Santos, continuou a cantar o fado mais baixinho e parecia um pintassilgo a cantar e a “dobrar”, ajudado pelo Muchacho! Este amigo desesperado, certo dia, pegou numa vassoura e queria “matar” o carcereiro porém, o Santos tirou-a das mãos para não agravar a situação penal... O João Muchacho ia resmungando para as paredes da cela e passava o dia a dormir, curtindo as mágoas…
O Candinho que se encontrava deitado no colchão “pulguento” da cela propôs aos amigos, para que no dia trinta e um fossem pôr o “Ano Velho Fora” pois, tinha uma carrela, uma japona do pai e um “sueste” do tio Geno.
O Santos olhou de soslaio para o amigo e respondeu-lhe pronta-mente:
O que quero é sair desta “cela velha” e o meu pai, quando chegar a casa, vai-me mas é “chegar a roupa ao pelo” e lá se vai o “Ano Velho Fora”…
O Pai do Santos, senhor Delfino, junto à lareira de casa, estava à espera do seu filho, para ir ao mar na Motora, e começou a ficar preocupado com a sua longa ausência. A senhora Maria Fifas, mãe do Santos, sentada num carunchoso banco, rezava pela sorte do filhinho que já lhe tinha pregado muitas partidas e precisava dele para apanhar isca porque tinha uns banhistas, seus clientes, que vinham aos sábados buscar as suas doses de isca para pescarem no cais “bilhano” onde as “pintas” estavam a “monte”...
Passadas umas horas, veio a saber pela “Maranhona” que o seu filho Santos estava preso.
Foi, de imediato, falar com o carcereiro que lhe disse que o filho realmente estava preso e tinha levado dois dias de prisão assim como o Candinho Gaivota e o João Muchacho. O Toninho “Zuri-que” tinha sido multado e escapara à prisão, por sorte dele!...
Entretando, o Alfredo Muchacho, pai do João, ao saber da notícia pelo “Caravelha” deslocou-se à prisão e foi falar com o carcereiro que lhe disse :
- Posso libertar o João, tio Alfredo, umas horas antes …
Não preciso de favores, respondeu de imediato o Alfredo Mucha-cho, pois esse vadio vai cumprir os dois dias e “mais nada”…
Pela noitinha, os três “artistas” foram soltos e, envergonhados, correram pela ribeira, e só pararam na Nélia para beberem uns suminhos a “meias” mas, o que eles queriam era ver a Branquinha de Vila Cova, a esbelta criada do Manel da Nélia…
Neste período natalício, a Nélia tinha as mesas e os balcões cheios de bolos de rei e muitas outras guloseimas: uvas passas, nozes, pinhões, figos de mel, frutas cristalizadas, chocolates…
Estes três “mosqueteiros” ficaram felizes por terem visto a Bran-quinha, com o seu avental folheado e a sua touca rendilhada, mas, perante os olhares ameaçadores do Manel da Nélia, que já os conhecia como “engatatões”, pagaram a despesa e foram para as suas casas porque tinham de ir para o mar, às cinco horas da manhã e o sono atormentava-os…
"Cantinho dos lobos do Mar"
NOTA:
Isto aconteceu em 1967/68 (?)
História contada, no dia 17 de Setembro de 2014 pelo Santos Coutinho, Candido V.Boas e João Muchacho, junto à lota e Esposende pelas 11 horas da manhã.
CMLB
por Carlos Barros
Os porcos rabichos
Estávamos numa sexta-feira, numa manhã cinzenta, nos inícios dos anos sessenta, com o nevoeiro a embaciar a bela paisagem do nosso Cávado, onde os barcos e as motoras desapareciam misteriosamente, dos nossos horizontes visuais, tal era o denso nevoeiro que se fazia sentir.
As gaivotas pairavam no ar, pronunciando bom repasto esperando pelas tripas-entranhas- lavadas pelas mulheres do matadouro, junto aos “terrões” do rio..
O portão do matadouro foi aberto pelo, funcionário camarário, Zé da Vila, muito cedinho e apenas o Valdemar estava encostado ao muro, com uma corpulenta vaca que olhava impavidamente para aquele sinistro local, mal ela sabia o destino que iria ter… O senhor Miranda- “Pastor”-, na companhia do Zé Fidó, estava a chegar com uma toura e um boi muito cornudo com uma longa barbela.
Pelas oito horas da manhã, começou a entrar o gado para o abate e uma carrinha Bedford de caixa aberta, transportava alguns porcos mal cheirosos e muito ruidosos, grunhindo, quase que adivinhando o seu fim…. O Calisto de Curvos estava a chegar com a sua bicicleta, fazendo grande “chiadeira”, com um cesto atrás, para transporte das encomendas e alguma carne.
O Zé Fidó chegava a ir a pé, a Viana do Castelo, Marinhas, Palmeira de Faro, Alvarães, Curvos, Vila Cova e outras freguesias transportando gado para o matadouro, percorrendo dezenas de quilómetros, durante muitas horas, para chegar às oito horas em ponto ao Matadouro Municipal de Esposende.
Com o matadouro em “rebuliço”, durante a manhã, o gado foi sendo paulatinamente abatido pelas “choupas” do Jaime da Faustina, Álvaro Filomeno e filho, pelo Zé do Talho (Teresinhas), sangrado e de imediato esquartejado, com o Valdemar a desfazer as vacas para o Talho Catora e algumas ovelhas que, com o seu ar “angelical”, foram sendo abatidas, numa ténue luta pela vida…
Os veterinários dr. Gonçalves de Vila do Conde e, mais tarde, o dr. Moreira de Barcelos faziam a inspecção sanitária aos animais abatidos, os quais levavam um longo carimbo, em toda a carne, como garante do controlo sanitário do gado. O senhor Marquês era um dos responsáveis sanitários do matadouro e estava sempre vigilante embora, fizesse “vista grossa” a algumas situações…
O Carlinhos da Jandira estava quase sempre presente às sextas-feiras ou segundas-feiras, e sob a cumplicidade e apoio do Zé da Vila, entrava no matadouro para segurar nas pernas dos bovinos, facilitando o trabalho do Valdemar e do Jaime ou mesmo do Zé Fidó, já que o seu desejo era receber a bexiga do animal para, depois de seca, ser utilizada de “cambra de ar” nas bolas de capão do Zé Pancas que possuía várias já que era o “rei dos papeizinhos-cromos- e das senhas da bola que era a garantia da bola de couro.
Os porcos, presos num longo e negro banco, eram mortos depois do gado, queimados com colmo, esfregados com pedras pomes e lavados com água quente e sabão rosa e posteriormente desfeitos pelos talhantes: Zé Fidó, Jaime…
Aos longos dos anos, as mulheres - Ângela do Corcunda, Quinhas da Vindeirinha (mãe do Quim Tripas), R. Mujica, Maria Picá- mulher do Russo-, Laura Ministra, Carma Ceareiro, Celina do Cocho) lavavam as tripas, -para as chouriças, “solas”,…- no rio que depois eram cozidas em panelões na cozinha do matadouro com o sangue dos animais e levavam um pequeno “quinhão” para casa…
João Louceiro com a sua carroça, auxiliado pelo Zé da Vila, Marquês e Artur Pessegueiro, recolhia e distribuía a carne do Matadouro pelos talhos de Esposende, poupando combustível uma vez que a égua estava sempre em boa forma física. Não precisavam da “Galp” apenas de uns fardos e palha e água para pôr a “viatura” a rolar…
A Páscoa, o mês de Agosto e o Carnaval, eram os períodos de maior actividade do matadouro onde o consumo da carne era maior.
O Quim Tripas sempre rondou o Matadouro para as suas aventuras e muitas pessoas estranhavam a presença deste ousado esposendense por estas paragens e a afunga-fisga- andava sempre ao pescoço, com os bolsos cheios de godos , as “balas” desse tempo…
Durante muito tempo, os porcos mortos e já preparados apareciam sem rabo e o sangue desaparecia dos alguidares e este mistério permaneceu durante muito tempo.
Interrogava-se o Álvaro do Talho:
- Como é possível os meus porcos aparecerem no meu Talho sem rabo?
O Jaime e o sr. Alfredo queixavam-se do mesmo mantendo-se preocupados já que muitos clientes compravam este saboroso apêndice, todas as semanas.
O Valdemar, gaguejando, disse ao Catora que desconfiava do Quim Tripas que não largava o matadouro…
Vou ver se saio mais cedo daqui, para levar o meu Matateu (tourinho domesticado e amansado pelo Valdemar) ao pasto no campo do Pirolau, avisava o Valdemar acelerando o seu trabalho.
O Zé Manel Catora afirmava que o Quim Tripas só vinha ao matadouro para nadar e dar uns mergulhos no “carreiro do rio” e para apanhar umas solhas ao pé, para levar para casa.
O Zé da Vila que estava a ouvir a conversa, junto ao Carlinhos, com o Tone Duarte na espreita, olhou para o sr. Álvaro do Talho e numa resposta rápida, avançou com uma idéia:
Na próxima vez, vou fazer uma emboscada e apanho o vadio que corta os rabos dos chicos…
Por volta das treze horas da tarde, o Zé da Vila, estava escondido por detrás da porta do matadouro, lado poente e com o gado todo abatido esperou, esperou até que….
Rastejando, pelo poente, apareceu o Quim Tripas, de calções de ganga, já muito “roçados” com uma faca enferrujada e pouco afiada, na mão, aproximou-se do banco onde estava o porco e cortou o rabo, que ainda fumegava, pela “raíz” e lançou-se em grande correria só parando na junqueira… O Zé da Vila, presenciando, esta situação e impotente em acompanhar a vertiginosa correria do Quim Tripas, entrou no matadouro, onde os seus amigos marchantes estavam a “mudar de roupa” e a lavarem as mãos e desabafou:
- Já sei quem é o “gandulo” que tem cortado os rabos aos nossos porcos!...
Quem é, quem é, perguntaram em uníssono, os talhantes presentes….
É o Quim Tripas que nos tem “roubado” os rabos e até deixou cair um copo plástico que era para levar o sangue para beber mas, não teve tempo!
Meu Deus, só poderia ser o Quim Tripas, mas é melhor fazer isto que partir os vidros todos do nosso matadouro como já tinha feito há uns tempos, concluiu o Zé do Alfredo perante o olhar impávido do senhor Jaime e do Júlio que tinham chegado ao matadouro naquele momento.
O cão “faine” (“fine”, em inglês) um “boxer” obediente e bem domesticado pelo dono, estava impávido, junto ao seu dono, senhor Jaime, com uma faca segura nos dentes para a entregar. O “faine” fazia muitos recados e era dotado de muito expediente e fugia da “vadiagem”….
O Quim Tripas cozinhava os rabos e, muitas vezes, comia-os crus e a acompanhar, bebia um copo de sangue que lhe sabia pela vida… Mas não era o único que bebia ou comia sangue –cozido- já que muitas crianças da ribeira também o faziam porque “fazia bem” à saúde… Era uma “receita” da época” onde a medicina apresentava muitas insuficiências e não estava evoluída como nos tempos de hoje.
Naturalmente, que o Quim Tripas não regressou, tantas vezes, ao matadouro, para o assalto aos rabos dos chicos mas, longe em longe, perante a distracção dos talhantes, os porcos ficavam novamente, sem rabos e eles diziam:
O Quim Tripas passou por aqui, mas já estamos habituados, afirmavam, conformados, os talhantes perante estas incursões do incorrigível Quim Tripas. Era uma criança ousada, destemida, aventureira, esperta e pugnava apenas, pela sobrevivência através de diversos expedientes e, nesses tempos, os estômagos de muitas crianças, “davam“ horas a todo o momento porque o alimento não abundava nos seus lares.
O Matadouro de Esposende, mais tarde, acabou, por encerrar, nos meados dos anos sessenta e o Quim Tripas adiou as suas traquinices contudo, outras aventuras apareceram que agitaram e despertaram o mundo das “crianças da nossa ribeira” que sempre viveram alegres, livres, felizes e confiantes na sobrevivência.
Esposende 6 agosto de 2014
"Cantinho dos lobos do Mar”
“Tiro aos vidros”
Atita, ainda te lembras quando andavas na motora do Zé Bêbado e, ao alar os “tróis”, com um grande congro preso, pegaste no bicheiro e fisgaste a madeira da borda da motora, perguntou o Taxi ?
CANTINHO DOS LOBOS DO MAR
por Carlos Barros
David, o espertalhão….
CANTINHO DOS LOBOS DO MAR
por Carlos Barros
O assalto às peras…
O Verão de mil novecentos e sessenta e quatro, presenteou Esposende, com dias de sol maravilhosos, sem nortadas e o sossego pairava na vila, excepto na ribeira onde o movimento, a agitação, a confusão e as “guerras” Norte-Sul, eram realidades constantes, sempre com a bola a rolar e os juncos e as pedras a serem maltratadas pelos “calosos” pés dos ribeirenses…
Junto aos beirais, as crianças estavam a preparar as suas aventuras, onde os “assaltos” às bouças, campos e pomares eram frequentes. Era a penúria económica e social desses anos de sessenta, com as crianças a lutarem pela sobrevivência, procurando nacos de pão, fruta, cenouras e até nabos de Gandra, ainda em fase de crescimento, pois eram mais tenrinhos. Nas suas casas era a lei da carência alimentar e nutricional porque o dinheiro era escasso nestas humildes mas, honestas famílias.
O dia tinha começado e os ribeirenses entraram de imediato em acção, relançando-se em ousadas aventuras pelo território esposendense que fervilhava de movimento e traquinice das inúmeras crianças que se espraiavam por todo o lado, saltando descalças e com as calças rotas no “rabo”.
O Artur Miquelino comandava as tropas e era o incontestável líder do grupo, mantendo respeito e coesão, já que um “berro” bem dado era disciplina garantida…
O Artur, com o seu cabelo grisalho, olhou para a “comandita” e propôs um assalto ao campo/bouça do Rocha Gonçalves onde haviam deliciosas peras que necessitavam de “colheita”… E poderíamos apanhar muita lenha para as “trempes” lá para casa, acrescentou o Serafim! O Santos lançou um grito de contentamento porque lá em casa já não havia lenha para o fogo, apenas uns paus , que eram de uns “cavaletes” da feira da Jandirinha que estavam apodrecidos pelo tempo.
O David Miquelino até saltou de contente porque poderia fazer umas “a-fungas” com alguns ramos….
Naturalmente que o “exército” ribeirense aceitou o convite e depressa se dirigiram em grande correria pela ribeira, campo do Pinto, estrada do Hotel Suave-Mar e finalmente chegaram ao portão da Rocha Gonçalves.
O Manel Laguna e o Santos vigilantes de fila, mandaram avançar porque não havia perigo à vista , ou seja, não havia vestígios do sr. Francisco que tomava conta dos terrenos e era uma “ameaça” permanente.
O Aré Mendanha, de nariz arrebitado, como sempre, estava atrasado e vinha todo contente porque tinha roubado uma bola de ténis que o Samuel Santos , que disputava um jogo com um francês, tinha lançado para fora do campo de ténis do Hotel, e a bolinha na estrada estava condena-da… O Aré apareceu todo sorridente e pronto para a acção, esfregando as mãos.
Com a autorização suprema do Artur, todos saltaram o alto portão da quinta, com muita facilidade já que a maioria destes ribeirenses estavam bem treinados no “aí vai peixe…” e, uma vez dentro do “território” inimigo, o Artur saltou para cima de uma pereira e começou a lançar as peras para o Manel Aicha, Santos, Manuel Laguna e João Muchacho que estava a dar uns toques de bola com uma pinha que estava no meio da faúlha. O Artur, sempre audacioso, ao mesmo tempo, ia cortando uns ramos secos resinosos que iam caindo “lá das alturas” e o Serafim e o Chana iam fazendo uns molhos que foram presos com cediela grossa apanhada no cais da ribeira.
Os bolsos dos “meliantes” estavam cheios de peras, apenas o Manel La-guna protestava porque não tinha nenhuma, já que tinha comido três peras, sem permissão do “chefe” Artur, sendo por este repreendido e ameaçado….O Tonho encostou-se a uma macieira e começou a roer umas maçãs verdes e guardava os caroços, bem esqueléticos, no meio da faúlha.
O Tonho, passados uns minutos, queixava-se da barriga mas ,uma pera de água fresquinha dada pelo Muchacho, foi remédio santo e funcionou co-mo uma aspirina!
Quando menos se esperava, com os vigilantes distraídos na comezaina, apareceu o senhor Francisco, armado com um ancinho, ameaçando os ribeirenses e todos fugiram como lebres, apenas o Artur Miquelino ficou “engalhado” no cimo da pereira e teve de descer, sendo apanhado pelo senhor Francisco que o prendeu no galinheiro da quinta, no meio dos as-sustados galináceos e dos pachorrentos patos.
Agora vou chamar o teu pai, disse furiosamente o senhor Francisco ao Artur que permanecia encerrado na improvisada prisão.
O senhor Francisco, em passada larga foi para o Bairro de S. Vicente de Paulo-bairro dos pobres- chamar o senhor Miquelino que estava a falar com o Rogério e o Geno sentados no “murinho” da casa, enquanto que a mãe do Santos, senhora Maria Fifas, vendia umas doses de isca a uns banhistas de Braga.
Então senhor Francisco, o que aconteceu pois está vermelho como um pimento questionou o Miquelino?
Ó homem, anda depressa comigo que vais ver onde está o teu filho respondeu em soluços o senhor Francisco que suava por todos os poros da pele…
Os dois dirigiram-se para o local do “crime” e mal chegaram ao destino depararam-se com o galinheiro todo rebentado, porta escancarada, fechadura destruída, com as galinhas e patos espalhados pelo terreno, usufruindo da pouca liberdade que nunca tiveram…
O Muchacho tremia “como varas verdes” já que tinha receio de ser nova-mente preso porque tinha cadastro na GNR, tendo estado preso, na “casa da rata”, dois dias onde sofreu castigos físicos de alguns agentes do posto.
Meu Deus, que é isto, lamentou o senhor Francisco amarrando a mão à cabeça….
O Miquelino olhou longamente para o velho amigo e respondeu-lhe prontamente:
Não digas nada, pelo que vejo o meu filho Artur esteve aqui! O que espe-ravas dele Francisco! Tivestes sorte daquela “vadiagem” não te ter serrado a pereira e alguns pinheiros e se não o fizeram, foi porque eles precisam desta fruta e da lenha para o inverno...
Podes crer, que é verdade, concluiu o Miquelino perante o rosto estupefacto do senhor Francisco.
Já em debandada, os “salteadores” foram para junto do torreão do Salva-vidas, para vigiar os seus seguidores, temendo pela GNR, o que não aconteceu, e puseram-se a comer sossegadamente as deliciosas peras sem serem incomodados.
Quem me dera um pirolito fresquinho, disse o Hilário que andava sempre escondido e medricas, como sempre…
Quando desceram do torreão, já de regresso a casa, os ribeirenses encontraram o Miquelino e com um piscar de olho, este desabafou:
- Meus vadios, já nem digo nada mas, sei que estais com a barriga cheia e isto é que importa….
Todos para casa e amanhã não quero ouvir mais histórias destas, disse o senhor Miquelino para o filho Artur e seus súbditos….
O Aré Mendanha e o Manel Laguna despediram-se dos amigos dizendo:
- Malta amanhã vamos assaltar o quintal do senhor Regado que tem boas maçãs mas temos de ter cuidado com a espingarda que dispara balas de sal….Temos de dominar o Laurentino que toma conta do quintal, disse o Artur mas , isso é canja respondeu o chefe Artur com ar desafiador.
Os ribeirenses regressaram a casa para comerem a malga de sopa, já que a sobremesa estava no estômago….
O final mês de julho, os pescadores de Esposende tiveram fracas marés e pescaram, nas suas ”artes” muitas cavalas e sardinhas e a variedade do peixe foi escassa. Apareceram enormes congros, alguns com mais de dez quilos mas vieram do Castelo… Ainda tinha os anzóis, com a respectiva “cediela” na boca… Já escrevi sobre sargos, fanecas, sáveis e cavalas e a-gora irei “navegar” no mar das curiosidades, no aguerrido e sagaz congro para além de umas curiosidades “semânticas”…
O congro é um peixe teleósteo anquiliforme (conger conger-do latim congruSofre metamorfoses e efectua migrações semelhantes às da enguia e, co-mo particularidade, os machos são mais pequenos que as fêmeas.
Os pescadores têm muito cuidado ao “safar” os congros” e um dedo na boca é destino fatal… Como prevenção e segurança, uma navalha afiada no pescoço do congro, fá-lo dormir eternamente…
“Côngrua:-Pensão que se dá aos párocos para a sua sustentação.: Congruência:-Relação , harmonia, de uma coisa com o fim a que se propõe; Coerência; conveniência; propriedade;
Congraçador:-.adj. e s.m.- que aquele que congraça; reconciliador; Congraçar:- harmonizar; pacificar; tornar amigo;reatar amizade.
Congruo:-Apto: adequado; proporcionado; suficiente; condigno;
Congruísmo:- Doutrina teológica, segundo a qual Deus dá ao Homem graça côngrua ou bastante.
Consultas:-
Dicionário Encilopédico Português- Editorial Verbo, S.A. 2006;
Dicionário C. Língua Portuguesa-Tomo 1.Texto Editores.
Compêndio de Zoologia-Porto Editora-
-.
“Pescador de histórias”
26 de Julho 2014
O Toninho foi fintado….
Era
uma segunda-feira, dia de feira quinzenal em Esposende, com o habitual
alvoroço, no Largo Rodrigues Sampaio, com as tendeiras e feirantes a montarem
as suas tendas e, pelas seis horas da manhã, já a Jandirinha, ajudado pelo
filho Pedrinho, menino de doze anos, espetava os ferros para prender as pontas das
varas, com cordas, que constituía a estrutura do toldo.
As
peças de tecido e miudezas - alfinetes, ganchos de cabelo, elástico, rendilhas,
tubos de linhas, agulhas, colchetes…, eram colocadas numa banca, assente em cavaletes
feitos pelo Carlinhos com a ferramenta do pai ou pelo Hermenigildo.
As
barracas espalhavam-se, como cogumelos, pelo Largo da feira com as roupas, cobertores
colchas, “samarras”, sapatos e botas, de toda a qualidade e feitio. As botas de
sola de “borracha de avião”, para as crianças, eram as mais procuradas pelos
clientes porque o inverno aproximava-se e esse calçado resistia às intempéries,
mesmo com os jogos da bola na ribeira…
O
trânsito estava acelerado, com os carrinhos de mão transportando legumes e
hortaliças, empurrado pelas lavradeiras de Góios, Marinhas, S. Bartolomeu,
Apúlia e Gandra, “capital concelhia dos deliciosos nabos”.
A
tia Louceira já estava instalada, no lado nascente do Largo, com a sua louça
espalhada - alguidares, cântaros, bacias, travessas, copos, chocolateiras,
panelas, pois a “era do plástico” ainda estava um pouco distante.
A
feira periódica em Esposende, era o eclodir de uma base económica local muito
importante e Esposende fervilhava de movimento comercial, social e humano e com
esta feira, Esposende despertava da melancolia diária porque era uma vila
pacata e com muito pouco movimento.
Em
todo o espaço do Largo Rodrigues Sampaio e parte da ribeira norte, se espalhavam-se
barraquinhas, tendas vendendo os mais diversos artigos e em plena ribeira
estava o gado a ser negociado pelos comerciantes com as mãos cheias de notas de
cem e quinhentos escudos, discutindo, gesticulando e “bufando” à procura de
embaratecer, o preço do gado, sob o ruído ensurdecedor do grunhir dos porcos.
Junto
à casa da Ciloca estava a ser montado o Circo “Torralvo” com a criançada a
assistir à sua demorada montagem e a olhar para alguns animais enjaulados.
Na
loja/armazém de cereais do Abílio Coutinho, o dia de feira era de incessante
trabalho na pesagem do feijão, milho e outros cereais que as mulheres
lavradeiras do concelho vinham vender, sendo esse cereal logo ensacado, depois
de ser pago aos vendedores. No balcão com a sua longa pedra amarela de
“mármore”, o Tio Abílio e o Carlinhos iam servindo os clientes habituais,
vendendo arroz carolino ou agulha-saco-, sabão rosa, queijo, figos de cera, marmelada e outros
produtos de mercearia.
Pelo
meio da manhã, alguns pescadores vinham comprar tabaco- “Kentuques”, Negritas, Provisórios,
geralmente “fiado”, normalmente os mais baratos, já que os maços da marca,
com filtro, Estoril, SG-Ventil,
Paris, Sagres, Porto, Sintra, Benfica,
Sporting entre outros, tinham clientes mais
“abastados”…
Foi
uma manhã de árduo trabalho e os sacos foram-se enchendo de milho e feijão
apatalado, mistura, manteiga, moleiro, branco, rajado…-, sendo amarrados com
corda e amontoados contra a parede que eram os bancos dos pescadores quando
bebiam a sua tigelinha, um “cagão” ou um copinho de aguardente com aniz em que
o Tio Chora era cliente diário, chegando mesmo a levar aguardente num
frasquinho que o colocava no bolso do casaco quando regressava a casa.
Eram
quase quatro horas da tarde, já com menos movimento no armazém, quando chegou o
senhor José da Lucas, acompanhado pelo
Manel Pezinho para beber a sua malguinha de vinho carrascão, fornecido
pelo Firmino de Vila Cova que o transportava, quase sempre à noite, num camião com o Manel Cunha e o Augusto a
ajudarem a pipa a rolar sobre rolos-toros- de madeira para as traseiras do
armazém, onde estava a tasca. Com uns figuinhos ou uma chouricinha, estes
pescadores lá iam bebendo, o precioso líquido, mas sempre moderadamente, ao
contrário de outros que bebiam até cair….
Com
o relógio da Igreja matriz, a dar as cinco horas, o Toninho entrou de rompante
na loja para beber o seu copo mas, por grande azar, o Carlinhos estava ao balcão
e ele sabia que o sobrinho do senhor Abílio não lhe dava vinho. A Tia Alice
encontrava-se na tasca a servir um copo ao senhor Fernandinho que, com as suas
mãos pretas de ferrugem e óleo, votava umas malguinhas “abaixo” da goela, sem
respirar…”Estas já se foram” dizia ele, com o seu ar de homem atarefado….
Carlinhos,
dá-me uns sugos, pediu o Toninho ao Carlinhos que estava desconfiado perante
tal inusitado pedido.
Será
que o Toninho me quer entreter a buscar os sugos e vai lá para trás beber uma
tigela, pensou o Carlinhos!...Fazendo uma simulação que ia buscar os sugos, o
Carlinhos sempre a olhar para o Toninho e este “zás”, num ápice desapareceu
para beber a tigela…
Já
a tia Alice estava com a caneca a despejar o vinho para a malga do Toninho,
apareceu o Carlinhos que num gesto de coragem e rapidez, afastou a caneca da
malga, enquanto a tia Alice olhava surpreendida com esta situação!
Tia,
está a dar de beber a uma criança, isso comigo não faz, senão vou-me já embora
para casa, ameaçou o Carlinhos. Por mais estranho que pareça, a Tia Alice ficou
imobilizada e teve a sensatez de compreender o gesto do sobrinho….
O
Toninho espantado, olhou para o Carlinhos e, sem ameaças, o que era raro, desabafou:
-“Filha
da mãe, tive azar, mas para a próxima, quando não estiveres vou encharcar umas
valentes tigelas….
O
Toninho saiu do armazém, encostadinho à parede e já na saída, foi perseguido
pelo Carlinhos, em curta correria porque já levava uma cerveja cristal
surripiada, de uma das muitas grades que estavam junto à parede da loja.
Hoje
foi o meu dia de azar lastimou o Toninho quando se dirigia para a ribeira ou,
provavelmente, para a Zezinha da Labrista, para “matar” a sede….
O
Carlinhos regressou para junto dos amontoados de sacos de milho e feijão, para
ouvir o senhor Zé da Lucas a contar a sua vida no navio de fio e do Brasil, onde
viveu alguns anos.
“Pescador de histórias”
Esposende 15 de Setembro de 2014
O Toninho foi fintado….
CANTINHO DOS LOBOS DO MAR por Carlos Barros
CANTINHO DOS LOBOS DO MAR por Carlos Barros
CANTINHO DOS LOBOS DO MAR por CARLOS BARROS
CANTINHO DOS LOBOS DO MAR
Sem hesitar, o Chico arrancou, com um martelo enferrujado, as dobradiças do tampo do malão, os pregos voaram contra o estuque da parede, e a improvisada “Nau” foi trazida às costas, para junto dos seus amigos que estavam ansiosamente à espera da prometida embarcação, a “Nau Chiconeta”-Catrineta-.
Por CARLOS BARROS
Um fadista amachucado…
“Vamos às solhas!...”.
O afogado que ressuscitou…
“ Os frangos voadores”
Mestre Belemino Ribeiro |