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domingo, 29 de novembro de 2009

Minha rua… meu mundo -MAX

Contos extraordinários de Max
A filha tinha chegado de um passeio de finalistas a Paris.
Vinha eufórica, extasiada, como que queria contar tudo de supetão enquanto esperava pelo saco de viagem, algures perdido na confusão dos restantes na bagageira do autocarro. Finalmente, lá apareceu.
Beijos e abraços de boas vindas entre filhos, pais e avós, mais parecia uma romaria, mesmo que o santo de ocasião nem beato fosse, aliás, vinham cheios de catedrais e outras coisas tais.
- Pai, digo-te uma coisa, fiquei bué de contente. Nunca tinha visto uma cidade tão grande e com tanto de bonito e grandioso. Adorei Notre Dame, a Torre Eiffel, mas o que mais me encheu foi a Disneylândia. Sabes que esperamos quase três horas na fila só para entrar?
A viagem até casa foi rápida mas os irmãos logo atacaram:
- Trouxeste-me aquilo que te pedi? – Perguntou-lhe a irmãzita mais nova.
- Esperai até verdes. Há recordações para todos.
Já em casa, naquele final de tarde e até quase à meia-noite, foi o desembrulhar de prendas e prendinhas, à mistura com a descrição pormenorizada do filme do passeio.
(…)
Alex reviu-se na filha e no tempo após dar-se conta que o seu relógio tinha parado.

Recuou-se na memória.
Na escola primária da vila, os Passeios/Visitas de Estudo eram quase uma raridade e só nos finais da Quarta Classe. Eram ali à Penha ou ao Castelo de Guimarães, ao Bom Jesus ou Sameiro, lá para Braga, à Santa Luzia, em Viana, e mais distante, para os lados do Porto ou arredores pois havia que chegar a horas, em estradas únicas e sem alternativas pois se fazia filas havia que desesperar. E seria uma sorte ir todos da classe pois os míseros escudos para as camionetas do “Linhares” ou da “Viúva” tinham que ser poupados, tostão a tostão, desde o Natal. Alguma subscrição entre todos, ou o mecenato da professora, lá fazia com que os mais necessitados também pudessem conhecer outros Esposendes maiores que a sua terrinha que, para a maioria, era ali que começava e acabava o seu pequeno mundo.
Mas, fora isso, e estes pequenos extras, a prendarem um exame quase impecável de Quarta Classe - que obrigava a decorar os cursos de todos os rios, caminhos de ferro, Geografia e História de Portugal, fora os problemas, os cubos e os trapézios, os hectolitros e as rasas, mais ainda as lições com frases cheias de curvas e de Moral do “Livro da Quarta Classe”, e sei lá que coisas mais… - brincadeiras de criança não faltavam na sua rua.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O exame - Max

MAX




Alex andava um tanto preocupado, como Director de Turma, em tentar acompanhar os seus alunos para as provas de exame de Língua Portuguesa e Matemática. Ia perguntando aos colegas destas áreas disciplinares se os alunos estariam preparados.
- S’tôr, no seu tempo também faziam exames a Língua Portuguesa e Matemática? -Questionava o mandrião do Bruno, cábula nº 1 da turma.
Sem esperar resposta, atacou logo outra aluna:
- É, s’tôr – preocupava-se a Isabel – só para o Gil Vicente temos que estudar a Barca do Inferno toda!
- Só isso? – Brincou Alex – é bom que conheçais todos os diabretes que lá entram. Já agora, já assististes a alguma encenação desse Auto da Barca?
- Eu já o vi num programa da televisão – assentiu a Cátia.
- Por que é que não sugerem à vossa professora uma encenação feita por vocês? – Personagens não faltariam nesta turma … deixem cá ver …
Olharam-se uns para os outros e começaram a rir-se. O “Mantorras” perito em todo o tipo de fintas, sobretudo quando fazia um manguito às aulas, aproveitou para espicaçar o Rafael:
- S’tôr, um que fazia bem o papel de Belzebu era o Ráfa!...
- E tu, fradeca – ripostou o Ráfa – a ti só faltava lavarem-te os pés e porem-te nos altares!
Risada geral. Mais apaziguadora, a delegada procurou interceder pela turma:
- Desculpe lá, s’tôr, nem toda a turma se portou assim tão mal, durante o ano. Olhe que as meninas até se comportaram mais ou menos!...
- Queres ver a santinha – elogiou-a o Daniel – vós sois todas é umas escovas! Já agora, tu fazias bem na peça era de alcoviteira!...?
- Pronto. Acabou o paleio – rematou Alex. Vocês sabem lá o que são provas de exames e logo desde a 4ª classe. Só vão acreditar quando se virem nelas e não terem tempo para as fazer!
- Oh s’tôr, no seu tempo também passava tudo? - Gozava o “Bigodes” pois já desfazia a barba desde os 13.
(…)
Alex fez atrasar o relógio do tempo.

sábado, 14 de novembro de 2009

A Ribeira

MAX
Naquela altura, o Brasil como Campeão do Mundo já era.
Os grandes jogos do “Mundialito” disputavam-se agora no “Maracanazinho” da Ribeira, pois os pelados da Central e do Emilinho tinham desaparecido. Em alternativa, restavam os do pinhal “Careca” e Junqueira. O primeiro, perdeu o estatuto por ter envelhecido depressa; o segundo, com “relva” demasiado alta, também não fora homologado.
Com as condições ideais para a prática desportiva e aprovado pela “Federação Internacional de Futebol dos Pobres” - que derivaria mais tarde para a dos “Sem Abrigo” - as disputas futebolísticas inter pares da grande Nação Esposendense disputavam-se então na Ribeira com grandes pelejas ao vivo e com olheiros de todos os quadrantes.
Como clubes federados havia o Norte, o Sul, a Central, o Grémio, o Jardim, a Lagoa, os Solteiros, os Casados e os estrangeirados provindos de um seleccionado de Góios.
A assistência era sempre de conveniência e preparada para participar, no fim de cada jogo, por outros meios e que acabava, o mais das vezes, com uma rusga da GNR alertada para o boxe entre os atletas.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A inundação

Max


No torreão do Salva-Vidas, o saco preto obedecia a uma sinalética para os pescadores. Se este se apresentava de pernas para o ar, significava que o vento soprava de sudoeste. Se aparecia uma bola preta, este soprava de Oeste. Na ocasião, a sua postura era prenunciadora de mar alto e mau tempo, com a barra fechada à navegação.


Nesse dia invernoso de Fevereiro, a chuva fustigou por demais a orla marítima. Madrugada dentro, coriscos e trovões abanavam as ténues casitas da Ribeira. Durante toda aquela santa noite, Alex não conseguiu pregar olho e enrolou-se, cheio de medo, por entre os míseros cobertores que cobriam ainda a nudez dos pais.

domingo, 20 de setembro de 2009

O exame - Max

MAX
Alex andava um tanto preocupado, como Director de Turma, em tentar acompanhar os seus alunos para as provas de exame de Língua Portuguesa e Matemática. Ia perguntando aos colegas destas áreas disciplinares se os alunos estariam preparados.
- S’tôr, no seu tempo também faziam exames a Língua Portuguesa e Matemática? – Questionava o mandrião do Bruno, cábula nº 1 da turma.
Sem esperar resposta, atacou logo outra aluna:
- É, s’tôr – preocupava-se a Isabel – só para o Gil Vicente temos que estudar a Barca do Inferno toda!
- Só isso? – Brincou Alex – é bom que conheçais todos os diabretes que lá entram. Já agora, já assististes a alguma encenação desse Auto da Barca?
- Eu já o vi num programa da televisão – assentiu a Cátia.
- Por que é que não sugerem à vossa professora uma encenação feita por vocês? – Personagens não faltariam nesta turma … deixem cá ver …
Olharam-se uns para os outros e começaram a rir-se. O “Mantorras” perito em todo o tipo de fintas, sobretudo quando fazia um manguito às aulas, aproveitou para espicaçar o Rafael:
- S’tôr, um que fazia bem o papel de Belzebu era o Ráfa!...
- E tu, fradeca – ripostou o Ráfa – a ti só faltava lavarem-te os pés e porem-te nos altares!
Risada geral. Mais apaziguadora, a delegada procurou interceder pela turma:
- Desculpe lá, s’tôr, nem toda a turma se portou assim tão mal, durante o ano. Olhe que as meninas até se comportaram mais ou menos!...
- Queres ver a santinha – elogiou-a o Daniel – vós sois todas é umas escovas! Já agora, tu fazias bem na peça era de alcoviteira!...?
- Pronto. Acabou o paleio – rematou Alex. Vocês sabem lá o que são provas de exames e logo desde a 4ª classe. Só vão acreditar quando se virem nelas e não terem tempo para as fazer!
- Oh s’tôr, no seu tempo também passava tudo? - Gozava o “Bigodes” pois já desfazia a barba desde os 13.
(…)
Alex fez atrasar o relógio do tempo.
Terminada a 4ª classe, alguns dos colegas de escola haveriam de começar a procurar trabalho, para a ajuda em casa. Uns, ainda como moços, na arte de trolha. Outros, das freguesias de Góios e Marinhas, seguiriam a lavoura. Os filhos dos pescadores da terra, experimentados já na pesca do rio, no tresmalho, na solha, no robalo, na tainha e na estacada da lampreia, iriam com certeza continuar a faina do mar. Só mesmo uma meia dúzia se aventurou nos estudos, mas para lá chegar, havia que passar-se no exame de admissão ao liceu.
Como a sua preparação exigia uns conhecimentos extra, os alunos complementavam a aprendizagem da escola em casa de alguns professores especializados. Supostamente preparados, também Alex lá se encaminhou, com alguns dos seus conterrâneos, para as provas de acesso, no liceu da Póvoa de Varzim. Primeiro, foi a Prova escrita. Dois dias após, a Prova oral. Nesta última, ficara mais descontraído quando no júri conheceu gente da terra.
Em pleno exame.
- Então diz lá, meu menino – perguntou-lhe um dos jurados – quais são as capitais das Províncias de Portugal?
Alex despejou o saco da sua memória fixiva e, num abrir e fechar de olhos, respondeu, acertadamente, ao quesito, só trocando as capitais das Beiras, mas nada que provocasse litígios regionais.
- Sim, senhor, vê-se que estudaste. Agora aqui o Sr. Doutor vai fazer-te outra pergunta, está bem?
Desta feita, um mais que mal humorado professor, de óculos dependurados no nariz, cabeleira à Beethoven e cachimbo à Kaiser, lançou-lhe a pergunta nº 2 da cartilha, fustigando-o, ao mesmo tempo, com uma baforada de fumo mais denso que o nevoeiro da Póvoa:
- Ouve lá, vais dizer o curso do rio Tejo, desde a sua nascente até à foz. Vê se cantarolas as povoações todas e que não falte nenhuma!
Um tanto amedrontado pela fisionomia esquisita do professor, coçando um dos joelhos, por baixo dos calçõezitos, e fazendo esticar os suspensórios com a outra mão, tentou perscrutar no mapa de Portugal onde ficava o rio Tejo – os rios vinham marcados a azul. Em cima da mesa, uma ampulheta de vidro vazava um fio de areia para o cone de baixo, indicador do limite de tempo da Prova oral. A letras gordas, lá visionou a capital LISBOA e o tal de rio Tejo. Depois, foi só fazer desaguar o percurso inverso. Apenas se “afogou” numa localidade, Salvaterra de Magos – tinha logo que esquecer-se dos reis magos da catequese! - Mas o essencial fora respondido.
Foi ainda inquirido sobre as serras do Caldeirão e Montejunto e mais este e aquele percurso das Linhas de Caminhos-de-ferro, assinaladas no mapa com sequências de dois tracinhos pretos paralelos e cruzados e fáceis de detectar a olho nu. Sobre estes últimos, uma hesitação no Entroncamento ia-lhe custando caro, mas não terá incomodado de todo o ministro dos transportes, lá em Lisboa. Reposta a povoação nos seus devidos trilhos, os comboios lá continuariam a fazer o seu percurso, indiferentes à ignorância momentânea. Acabou por merecer um aceno positivo do mal-encarado professor.
Agora vinha a cartilha da Matemática.
- Então, és bom nos problemas? - Perguntou-lhe o professor de barbas.
- Assim, assim! Mas gosto mais dos milhões e dos volumes dos sólidos…
- Vamos lá ver isso. Vais ali ao quadro e escreves o seguinte número: 2 biliões, novecentos e quarenta e sete milhões, seiscentos e oito mil e …mais quatro unidades.
Pegando no giz, Alex lá se desembaraçou: 2947.608.004. O professor olhando de soslaio a solução, emendou:
- Olha lá, não te parece que falta nada?
- Ah! O pontinho nos biliões, Sr. Professor! 2.947.608.004!
- Ora aí está! O pontinho é mais que um simples pontinho, pode ser uma fortuna, sabias?
Por fim, veio a prova de Português. Desta feita, sentiu-se como peixe na água pois o examinador era da sua terra.
- Olá, por aqui, meu maroto? – Brincou o conterrâneo.
- Sim, Sr. Doutor, a ver se entro no Colégio Infante de Sagres.
- Claro que vais entrar, claro. Estás a fazer uma bela prova, sim senhor. Gostas de ler e escrever?
- Mais ou menos …
- Olha, vais ler então o trecho do teu livro, na página 47, está bem?
Calhara-lhe a fábula da Raposa e da Cegonha. A sua voz era pausada e sublinhada, parando em cada vírgula e sobretudo dava particular ênfase às interrogações. Preocupou-se até em imitar, guturalmente, a manhosice da raposa e deu à cegonha a primazia do diálogo, merecendo por isso a admiração do docente.
- Muito bem, menino, muito bem!
Seguiu-se a análise morfológica e sintáxica do texto e a declinação dos verbos Ver e Ter, com as rasteiras já habituais, se eram com um único é ou dois e se os primeiros tinham ou não carapuça – acento circunflexo –, prova superada na perfeição, por tanto ter praticado nas aulas de preparação.
- Óptimo. Podes sentar-se.
No final da prova, dirigiu-se para casa, na camioneta da Viúva, de Viana do Castelo. No trajecto, foi saboreando o lanche da sêmea com marmelada que a mãe lhe guardara. Estava eufórico. A paisagem da Estela até Apúlia e desta até Fão voou-lhe pelas vidraças e, coisa rara, nem chegou a enjoar até à vila. Parou em frente à Nélia e, de prenda, a mãe ainda lhe comprou um pirolito p’ra beber e mais um guarda-sol de chocolate!
Dois dias depois, a expectativa estava virada para a lista dos aprovados ou reprovados, fixada no átrio do liceu, o que mereceu nova ida à cidade do Cego do Maio, na charrete do Linhares. Ansioso, voou para as pautas.
(…)
Nº 1 – Aarão Mendes da Silva – APROVADO (a tinta azul)
(…)
Nº 34 – Alberto Simões Fontaínhas – REPROVADO (a tinta vermelha)
- Sou eu a seguir – murmurou com os seus botões. O olhar esbarrou-lhe no seu nome.
Nº 35 – Alexandre da Silva Pacheco – APROVADO (a tinta bem azul)
- Passei!!! Passei, mãe!...
Dera dois pinotes no ar e quase a provocarem-lhe cólicas por tão grande contentamento.
Recebera de presente uma caneta de tinta permanente, cor azul e que tinha custado sete e quinhentos!
(…)
- S’tôr, já tocou p’ra sair – avisou a delegada de turma.
- Desculpai, não ouvi. Preparai-vos bem. Podeis ir. Até à próxima.
- Não se esqueça, S’tôr!?

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Minha rua… meu mundo -MAX

MAX

A filha tinha chegado de um passeio de finalistas a Paris.
Vinha eufórica, extasiada, como que queria contar tudo de supetão enquanto esperava pelo saco de viagem, algures perdido na confusão dos restantes na bagageira do autocarro. Finalmente, lá apareceu.
Beijos e abraços de boas vindas entre filhos, pais e avós, mais parecia uma romaria, mesmo que o santo de ocasião nem beato fosse, aliás, vinham cheios de catedrais e outras coisas tais.
- Pai, digo-te uma coisa, fiquei bué de contente. Nunca tinha visto uma cidade tão grande e com tanto de bonito e grandioso. Adorei Notre Dame, a Torre Eiffel, mas o que mais me encheu foi a Disneylândia. Sabes que esperamos quase três horas na fila só para entrar?
A viagem até casa foi rápida mas os irmãos logo atacaram:
- Trouxeste-me aquilo que te pedi? – Perguntou-lhe a irmãzita mais nova.
- Esperai até verdes. Há recordações para todos.
Já em casa, naquele final de tarde e até quase à meia-noite, foi o desembrulhar de prendas e prendinhas, à mistura com a descrição pormenorizada do filme do passeio.
(…)
Alex reviu-se na filha e no tempo após dar-se conta que o seu relógio tinha parado.
Recuou-se na memória.
Na escola primária da vila, os Passeios/Visitas de Estudo eram quase uma raridade e só nos finais da Quarta Classe. Eram ali à Penha ou ao Castelo de Guimarães, ao Bom Jesus ou Sameiro, lá para Braga, à Santa Luzia, em Viana, e mais distante, para os lados do Porto ou arredores pois havia que chegar a horas, em estradas únicas e sem alternativas pois se fazia filas havia que desesperar. E seria uma sorte ir todos da classe pois os míseros escudos para as camionetas do “Linhares” ou da “Viúva” tinham que ser poupados, tostão a tostão, desde o Natal. Alguma subscrição entre todos, ou o mecenato da professora, lá fazia com que os mais necessitados também pudessem conhecer outros Esposendes maiores que a sua terrinha que, para a maioria, era ali que começava e acabava o seu pequeno mundo.
Mas, fora isso, e estes pequenos extras, a prendarem um exame quase impecável de Quarta Classe - que obrigava a decorar os cursos de todos os rios, caminhos de ferro, Geografia e História de Portugal, fora os problemas, os cubos e os trapézios, os hectolitros e as rasas, mais ainda as lições com frases cheias de curvas e de Moral do “Livro da Quarta Classe”, e sei lá que coisas mais… - brincadeiras de criança não faltavam na sua rua.
Aliás, o seu pequeno mundo passava-se ali, fora dos tempos da escola.
Na vila de então, onde todos se conheciam, os apelidos eram mais que muitos numa simbiose de “matrículas” associadas que quase seria preciso notário especializado para se lhes chegar à origem.
Havia um rol de “etiquetas” para toda a gente e até o carteiro guiava-se por tal “código” onomástico.
Aquela rua era na sua imaginação de criança, muito superior a toda a Disneylândia das Franças e arredores. Aqui, toda a gente falava a mesma língua e toda a criançada brincava às mesmas brincadeiras. Então nas tardes de Verão aquilo virava Feira Medieval, à mistura com jogos circences, cantigas de “amigo” e algumas de “maldizer”, sobretudo quando à nicada, o peão, estreadinho de ser comprado no António da Leocádia da esquina, ficava guilhotinado pelos carrascos dos compinchas. Mas, de ser homem, até as lágrimas se lhe secavam ao sair.
Mais além, era o jogo do botão com as cacholas a dominarem. Havia a “banca” de botões pois cinco de quatro buraquinhos minúsculos das camisas de noite das mães - quem as tinha, porca miséria? - custavam, no “câmbio negro”, um tostão!
Aqui, as moças disputavam, na corda, a perícia das entradas, saltitando a solo ou aos pares, fazendo esvoaçar os vestidos que pudicamente aconchegavam. Outras jogavam ao “Reloginho” e à “Macaca” desenhado o chão, a lembrar Cristo, na forma dos ponteiros do relógio, ou em cruz, e pulando os respectivos quadrados com um ou os dois pés.
- Pisaste. Perdeste! – Arbitrou a Licas e ao mesmo tempo concorrente na brincadeira.
- Num pisei nada, aldrabona. Viste, Taina?
E logo entrava ali uma política de interesses, de compadrios e de virar de olhos que funcionava em pleno.
No jogo da malha, “Made in próprio”, de ardósias bem torneadas e arredondadas pelos godos, disputava-se os três pontos de cada “mecada” mais a terminação do ponto de aproximação, até aos trinta. Malha de ferro era um luxo e só para os graúdos.
Mesmo à porta da “ti Caveira”, no jogo das latas, as bolas de meias velhas e farrapos faziam chinfrinar toda aquela latoada, que abalada na sua estrutura de Pisa desmoronava-se, assustando rafeiros e gatada que fugia a sete pés.
Pelo meio, e de caminho do fontanário, a Belinhas, nas suas quinze viçosas Primaveras, de rodilha à cabeça, equilibrava o seu cântaro de barro, salpicando água e olhares, pela pressa em chegar a casa, meio ruborizada pela choque do “Zé Tremedeiras”, o “peixarão” lá do sítio:
- Olá, “faneca”, queres vir na minha catraia?
- Vai tu, seu viscoso. Vai-te afogar…
- Não me importava nada de me afogar no teu cantarinho, amor…
- Ai é? …Só me sai pilado de rasca! ‘Inda há-de vir o lavagante que me há-de encantar, seu mexilhão das pedras!
- Só agora, rapariga? – Vociferou a mãe, em chegada à porta - P’ra quem é que estavas a falar?
- Foi nada, mãe.
Em redor, e aproveitando a pista calcetada de pequenas lascas de lousa, vergalhau e terra areada, “Joaquins Agostinhos” contornavam bancas e banqueiros, nas suas motas de pau com travões a condizer, aros de bicicletas ferrugentas abandonadas ou simples arcos de gancheta, exímios em ultrapassagens automáticas por derrapagens perigosas, derrubando “donas Brancas” de ocasião que, para bem de todos, dispensavam peritagem oficiosa da Guarda Republicana.
Outras sinfonias:
- Manelinho, oh Manelinho … (?) Onde raio te meteste, filho? – Clamava a tia “Chora” – Aliás, toda a gente era tratada por tios e primos, naquela rua.
Que Manelinho, qualquer Manelinho!... O rapaz era um figurão. Então não era que o nosso sabido já era um Ás na Bisca e no “Sete e meio”? Ali, a banca funcionava a dois tostões o montinho. E o seu investimento já ia na moedinha das caravelas dos dois e quinhentos! – Sabia lá a mãe do curso de “Economia” do seu doutor!
- Nosso menino, num bistes o meu Manelinho ? – Angustiava-se a progenitora com lágrima à espreita.
- Eu não, tia “Chora”. Deve estar ali pró S. João…- apontou-lhe o “Caixa d’óculos”.
Ainda num último encore:
- Ma…ne...lin…………….ho … (?) – Ecoou, em ressonância, rua fora, aquela voz bombardina, estremecendo os vidros alanhados da janela vizinha.
Nada de Manelinho!(?)
Do fim da rua, perto do fontanário do Norte, e num falsete que fazia ofuscar qualquer Pavaroti:
- Já vôoooooooooo…u mãe – E o Manelinho “ressuscitava” daquela assombrosa desaparição.
Perdeu meio investimento de um escudo, mais dois tostões da “cruz de Cristo” pois a banca sugou-lhe três apostas seguidas, ao montinho. E que azar: dois Reis e uma Dama fizeram vassalagem a uma Manilha, um Ás e um Valete de Copas do banqueiro “Zé Tamanco” - um veterano nas suas polainas de carpinteiro e nos seus treze anos de aprendiz, no Vila Verde, pelo manejo do pinho e do carvalho.
Meio triste, zarpou até casa, por medo do pai.
O ti Manel, furioso por tanta gritaria da mulher, levantou-se chateado e cozeu-se à ré da porta, enquanto palitava os dentes das espinhas do congro cozido.
Esperou.
Como lagostim em garapau, ao deambular porta dentro, Manelinho, viu-se entre as manápulas do pai:
- Anda cá, meu estupor, não ouviste a tua mãe?
Sem aguardar resposta, alapou-lhe, mesmo ali, três tabefes tão bem assentes que, ao último, o puto abanou, inclinou, e voou corredor fora aterrando na mesa da cozinha.
Fartou-se de chorar que até comoveu o gato “Bigodes”.
Finalmente, lá trincou a comida meia fria.
A Feira Franca continuava no auge.
Ao lado, nos muros dos Sant’Antónios de pedra do mestre Quintino, outras moças disputavam a chupila, nos botões, com uma algazarra tão sopranina que abafava até as baritonices dos rapazes, agora em jogos de força:
- Eu posso mais que tu, oh “Trinca Espinhas”. Anda, assai-te, badejo podre… (?)
Tais “crismas” ultrajantes na canalha tinham o condão de a espevitar para a “honra perdida”, desde que o arcipreste a baptizara de santos e santas, em Zés, Tónes, Joões e Teões ou Fátimas, Lurdes, Saúdes e Laidas e de outros nomes de beatos em lista de espera de altares.
Culminava sempre na dita desforra verbal ou luta “greco-romana”, logo ali e no lugar.
- E (as)saio-me, “Zé ranheta”. Anda … “Zé ranheta”
Assistia-se então à subida do pódio das hierarquias, perante júris tão avalizados que após minutos de engalfinhamentos, calças rotas e camisas desbotoadas e com arranhadelas à mistura, decidiam logo ali.
Até à próxima desforra.
Já depois do jantar.
- Tóne, dá-me uma bucha … (?) – Como que lhe apedrejavam a cara os olhos do “Sêmeas”.
Numa de “santa irmandade”, o amigo das cavalitas, arreganhando a tacha amarelada, lá distribuía uma mísera côdea de pão ao “Sêmeas” que, em paga, o convidava para o jogo das corridas, descalços - “até ao S. João e vir”. No dia seguinte, o “Sêmeas” pagava com juros, deixando o amigo dar duas trincas na sêmea -“irmã” comprada, a cinco tostões, na tia Lucas da igreja. Pura fraternidade aquela!
Em casa, o candeeiro a petróleo lampejava sombras fantasmagóricas no teto de barrotes enquanto a mãe se afadigava tentando enfiar a filharada toda na cama. Cinco numa tarimba e ainda mais o pequenito no leito dos pais.
Pela madrugada, o ronca do farol amedrontava de sonhos e nevoeirada o sono justo desta geração de pobres-ricos.
“Tão …tão…tão …” – Ia repicando, lá do alto, o sino da matriz nas badaladas das horas também elas a precisarem de merecido descanso.
Por fim, a noite agasalhava tudo e todos no seu manto de silêncio.
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sábado, 8 de agosto de 2009

A la française... - Max

MAX

- Olha quem ele é! – Surpreendeu-se Alex, ao reencontrar o velho amigo das brincadeiras da Ribeira e rival do sul, emigrado em França.
- Cada vez estás mais no…vo, messiú! – Respondeu, com a sua dificuldade de fala, o comparsa de escola e também camarada de armas, aos tempos da “velha Senhora”, em Angola.
- Então, por vacance(s)? – ripostou o comparsa, alinhando no bilingue do palavreado.
- Nunca falho às festas da Sra. da Saúde – adiantou o amigo e um habitué dos andores da procissão – Os meus filhos já nem ligam a isto, on restent en Nancy. Vim apenas moi, ma femme e este meu netinho, o Michele.
- Outros tempos! – Anuiu Alex – Eu continuo a cumprir a promessa de vir ver a entrada das bandas, ali à praça. Vou apreciar o contramestre do Zequinha que vai “reger” a banda dos Bombeiros de Esposende.
- Ele ainda improvise aqueles fa…dos e uivos guturais para os banhistas?
- Parece que sim, enquanto o tinto o anestesiar. Também te digo, sem estas figuras típicas de fazer engolir o cigarro, atrás da língua, por ilusionismo barato e dar o seu pé de dança, já nem parece Esposende!
- Uh la la!..! Acom…panho-te.
Agora, no largo da Câmara Municipal, à espera da entrada das bandas de música. Atento às diabruras de Michele, o avô tenta repreender o puto:
- Michele, tu vas tomber!
- Mais non … grand- père…
O ameno da conversa seria interrompido pela entrada da primeira banda, lá dos lados de Águeda.
À frente, quatro elementos da Comissão de Festas, garbosos nos seus fatos de gala domingueira e da importância do momento festivo orientavam o desfile dos músicos, a caminho da Praça.
Logo atrás, na primeira fila, faiscando ao sol, canhões de quatro tubas douradas e reluzentes abriam alas, ritmando nos seus baixos a “Marcha” do compositor brasileiro Sousa. Nas filas imediatas, seguiam-se a artilharia pesada dos bombardinos, saxofones e as trompetes. Lá para o meio, uma infantaria de oboés e clarinetes disputava a primazia sonora às flautas e flautins nos seus tímbricos agudos. A fechar este pelotão musical, bombos, caixas e pratos varriam a metralha acústica os músicos da frente, em fole de concertina, num incentivo à vitória da contenda musical, ora iniciada entre as duas bandas, obrigando-os a acertar o passo e o compasso.
Ao longo dos nove minutos e meio de exibição, em ritual dos quatro pontos cardeais – Havaneza, Primorosa, Misericórdia e Câmara - os músicos como que cumprimentam cada parte da assistência para onde se vão voltando, exibindo as frases melódicas mais emblemáticas da “Marcha”.
Eis senão quando, entra em cena o nosso Zequinha que logo toma a “chefia” da banda. Mesmo sem batuta mas ao ritmo de quem também percebe da poda, aproveita para se exibir numas chicoelinas, enquanto logo, em passos de tango, imagina conduzir uma dama invisível, fazendo corar e distrair até as meninas dos flautins e do carrilhão de sinos que sorriem deste multifacetado “chefe” e “bailarino argentino” de última hora.
“Tararatátá…TáTá. PUM”. Era o final da exibição.
Aplausos da assistência.
O chefe da banda é apresentado às autoridades locais pela Comissão de Festas e cumprimenta o representante da autarquia e o Monsenhor, entre outras entidades oficiais, enquanto a assistência vaticina da qualidade e quantidade dos músicos.
Agora e a caminho do arraial.
Tenta refazer-se a banda mas a coisa parece feia, dada a dispersão atabalhoada dos olheiros que se confunde com a dos tocadores. A Comissão de Festas acaba por repor a ordem. E mestre Sousa lá vai sambando na sua Marcha enquanto as notas de música voam a caminho do palanque da Sra. da Saúde.
Para trás, o relógio da Câmara lavava as mãos da solenidade festiva daquelas catorze e trinta pois mantinha-se renitente e fiel no seu adormecimento de greve contínua, parado que estava, há anos, nas três e vinte e quatro da madrugada!…
Retomando a conversa.
- Então, que contas mais? – Reatava Alex.
- Olha pá, mes fils já eram, os ne…tos já são e agora estou qua…se na retrête …
- O quê, mas tu não trabalhavas nas obras?
- Mais oui! Que…ro dizer, que estou a tratar da minha re…forma.
- Fazes bem. Por cá, já só de bengala, com reumático ou esclerose múltipla comprovada é que a gente irá de vacances … p´rá retrete!...
- Ou la la? C’est tout une merde.
- …que já se cheira ao longe!
Entretanto, Michele insistia em escalar a estátua do Correia de Oliveira.
- Michele, tu vas tomber! – Preocupava-se, de novo, o avô.
Já lá para o final do desfile da Banda dos Bombeiros de Esposende, de S. Paio D’Antas, e os cumprimentos da praxe.
- Pois é, pá – rematava o françiú – logo no arraial vai haver dis…puta entre as duas bandas. Vou ver se também desenfer…rujo as pernas, se os gajos player umas rap …sódias.
Cada vez mais preocupado com o rapaz, que já se encarrapitara na careca do poeta.
- Michele, tu vas tomber…
Após queda do miúdo.
- Filho da pu…ta, já caíste!
Michele aterrara são e salvo nas hortênsias lilases do canteiro. Nada de grave, a não ser uns pequenos arranhões num braço.
- Mais non, Michele, c’est tous bien mon fils? - Afligiu-se então o avô.
- São crianças. Isso passa logo – despediu-se Alex – Se a malta não se vir, felicidades. Boas férias.
- A bientôt!

terça-feira, 28 de julho de 2009

Saudades de morrer - Max

MAX
O carioca tinha chegado para mais umas férias. A última vez que o fizera fora há alguns anos e agora estava estupefacto com a evolução da nova cidade.
- Oi, cara, isto aqui não era o matadouro antigo?
- Sim, agora é o que vê, cheio de prédios – Assentiu Alex.
- Minha Nossa, como isto evoluiu!... Eh, e aquela ali não era a Casa do Povo?
- Pois, agora virou minimercado!
- Um ringue! Eh, donde veio aquela negada que está a jogar a bola?
- Alguns deles são filhos dos antigos retornados das ex-colónias, outros aproveitaram a boleia, após a guerra do Ultramar.
- Puxa, cara, quem viu os moleques do meu tempo e a sua pobreza num esquece não. Você conheceu os lavadouros antigos onde se ia lavar a roupa?
- Ah, isso fica lá p’ró Norte. Havia aquele lá p’rós lados do Chora e o das traseiras da Igreja.
- Minino, você recorda aquele aqueduto fedorento que corria a céu aberto até ao rio?
- Eu não sou desse tempo?
- Ah, não, você alguma vez furou o túnel do aqueduto de ponta a ponta?
- Mas claro … até se ia aos irões por cima dele com pesqueiras de tripa de raia e sardinha!
- Sabia que a minha geração andava nele de noite para afugentar as bruxas?
- Como então?
- Não contei, não?
Naquela escuridão trimenda, a gente assustava a vizinhança, indo com vela de estearina e lampião pelo seu interior e cantando o Miserere da Semana Santa, da Banda do Burro de Bilinho, pondo as beatas da rua todas assustadas. No dia seguinte, a ti “Caveira” apregoava em toda a rua que tinha ouvido e assistido à procissão dos defuntos passando entre a ponte!... Ah! Ah! Ah!...
- Eram sacanas, os mais velhos!
- E você só sabe meia missa!
- Eu recordo mais é o sítio da Ribeira e das nossas partidas da bola e outras brincadeiras. Acho que a minha geração viveu realmente a sua meninice e as suas fantasias de criança no meio do ar puro. Agora nem espaço há pois está tudo tomado pelo cimento!
(…)
- Puxa! Que nortada que leva tudo pelos ares! Já esquecia desta sensação di vergastada no rosto dos tempos di criança. A propósito, se lembra das joeiras que a gente fazia com o fio de algodão comprado no Sá velho?
- Ainda foi ontem. Faziam-se à mão com canas de foguete e papel de jornal e com rabos de guita que entrelaçavam pedaços de farrapo velho; as mais vistosas levavam papel verde das clarinhas da Nélia com os sargaceiros estampados quase made in Apúlia ou, em alternativa, outros mais coloridos surripiados aos embrulhos dos livros da livraria do Vieira velho! E quando elas se enrodilhavam nos fios eléctricos e dos telefones!?
- Lembra não, que saudades desses tempos de moleque. Agora já nem há lavandiscas nem charréus, como no nosso tempo. Viu algum? Quantas vezes as nossas afungas e ratoeiras matavam a fome lá em casa. A carestia era tal que até os desgraçados dos ciganos desenterravam porcos e galinhas, mortos por doença, para amenizar a larica. Lembra?
- É verdade. Os campos foram-se e o cimento tomou conta disto. Agora são contados os esposendenses autóctones pois o mais é gente que arribou de fora, para não falar dos imigrantes ucranianos, romenos e até dos chineses que nos invadiram de todo o lado!
- Nossa, esses olhos em bico também estão cá?
- É a globalização!...
(…)
- Mi diz, quem é o arcipreste daqui?
- Não conhece. É novo.
- Que saudades do Infante “Suavíssimo”, pelo Natal, e da marotada do Sábado Santo quando o Aleluia da Ressurreição ressoava na matriz!
- Quem não lembra?
- Minha Nossa, aquilo era o frenesim e antes mesmo que o Piriri tocasse os sinos da meia-noite, os diabretes antecipavam-se, corda em riste ou dependurados nos crepes negros e forçavam o Cristo a ressuscitar dos mortos … antes do tempo!
- Lá no Brasil é igual?
- Oi, cara, a gente lá não liga mesmo a essas coisas. Até parece que a religião acabô. Missa é coisa doutra geração. Agora o que está dá é padre-cantô para captar a juventude, até faz concerto público em estádio e coisa assim. Vende disco que é di pasmá. Lá, é mais seitas que outra coisa. Você sabe que só na minha rua há quatro seitas protestanti’s e o safado do bispo di cada uma passa no apartamento, mensalmente, a exigi o décimo do ordená? Dou nada. Dinheiro custa muito do nosso sangue, não é p’ra sustentá mandriões. E di todo eu sou da religião da minha mãe, não vou virá casaca, não!
- É mesmo! Cristo deveria vir cá abaixo, com uma zurrapa, e expulsar estes vendilhões do templo.
- Fala, não. Se o céu se comprasse, filha da ---- di rico já tinha apartamento no outro lado, né !?
- Vamos, depois damos outra volta.
- Tá.
De regresso e cumprimentando supostos conhecidos:
- Oi, siôra, como passa? Você não é mesmo … parentchi da ti Ana, como era (?), da ti Ana Branca?
- Desculpe. Não sou de cá!...
- Peço perdão. Mi desculpe, sim, madame.
Pela beira-rio, a nortada continuava a fustigar as folhas das árvores raquíticas da marginal e engravidava ceroulas, cuecas e combinações de mulher, estendidas, a secar nos arames, junto ao cais do sul.
Enterrados no lodo, putos andavam à isca para a venderem aos banhistas. No correr da marginal, o marketing de papelão propalava: Bende-se bixa.
Um pequeno comício de pescadores – abrigados da nortada e emparedados no mercado novo, por terem desaparecido já os encostos da velha tasca do Centelhas, a norte, e a casa do ti Libânio, lá ao sul – discutiam ainda estratégias para a entrada e saída da barra, enquanto carpiam as suas motoras que foram todas desaparecendo e, com elas, o seu ganha-pão.
- Lembra as rifas das panelinhas da Ribeira e os circos que por cá passavam? – Continuou no desfile das lembranças o brasuca.
- E até grandes encenações teatrais representadas e outras que o no antigo Theatro Club, virado agora nuseu! – anuiu Alex.
- Saudades, cara, saudades da vida de minino e do meu torrão natal!
(…)
A maré vaza do Cávado albergava batalhões de gaivotas e maçaricos que se perfilavam como que à voz de um comando.
Quase ao anoitecer, travavam-se outras guerras entre andorinhas e abelhões.
Já perto de casa:
- Até mais ver, moço, e obrigado – rematou.
- Sempre ao dispor.
- Amanhã eu dou carona em você, vamos visitar uns caras amigos, a Viana, pois levo encomenda de familiá.
- Pois sim – despediu-se Alex.
Àquela hora, o sino da matriz batia as badaladas da Trindade.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Saudades de morrer é o título do próximo conto do Max

Leia alguns trechos selecionados para degustação:

(...)Pela beira-rio, a nortada continuava a fustigar as folhas das árvores raquíticas da marginal e engravidava ceroulas, cuecas e combinações de mulher, estendidas, a secar nos arames, junto ao cais do sul.
Enterrados no lodo, putos andavam à isca para a venderem aos banhistas. No correr da marginal, o marketing de papelão propalava: Bende-se bixa.

Um pequeno comício de pescadores – abrigados da nortada e emparedados no mercado novo, por terem desaparecido já os encostos da velha tasca do Centelhas, a norte, e a casa do ti Libânio, lá ao sul – discutiam ainda estratégias para a entrada e saída da barra, enquanto carpiam as suas motoras que foram todas desaparecendo e, com elas, o seu ganha-pão.(...)

(...) A maré vaza do Cávado albergava batalhões de gaivotas e maçaricos que se perfilavam como que à voz de um comando. (...)

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Contos extraordinários de Max

Já que o assunto dos últimos posts tem sido o glorioso Esposende Sport Club, Max, o nosso colaborador especial, enviou este magnífico conto para nos relembrar dos jogos de domingo à tarde no campo Padre Sá Pereira.

Leia alguns trechos selecionados para degustação:

(...)

"Entrada das equipas.- Es…po..sendê ! Es…po..sendê ! Es…po..sendÊEEE !

Admirar aquele jeito malabarista do Jaime ao fazer rodopiar o esférico no seu dedo indicador direito, era digno de figurar nos anais circenses do futebol. Mais estranho haveria de parecer, durante o jogo, certas trivelas de alguns dos nossos craques que à força de jogarem descalços na Ribeira ainda estranhavam o luxo das chuteiras!"

(...)

"Farol (g.r.), Monteiro, Zé da Vila, Passos, Russo, Pinto, Jaburu, Sotero, Losa, Jaime e Laguna, foram alguns dos craques e os heróis dessa tarde memorável pois inverteram um resultado negativo de 0-2 da primeira parte, num 3-2 final e que deixou a claque ribeirinha ao rubro. E que fantástica a exibição do Sotero e do Jaburu que fariam eclipsar o nosso galáctico CR9.
No final, a aclamação do “Pompa e Circunstância” do lado da bancada rivalizava com o “We are the Champions” do lado do peão e era delirante:
Es…po…sen…dê ….Es …po…sen…dê…Es…po…sen…dêêêêê!"

MAX

Leia o conto na íntegra no post Aquele jogo … por Max .

Aquele jogo … por Max

MAX

- Oh pai, levas-me ao futebol ? Solicitava, choramingando, o miúdo, naquele Domingo de “clássico” Esposende vs Monção.
Sem responder ao puto, o progenitor fazia contas de cabeça se os míseros trocados do que sobrava da faina da pesca da véspera, após a compra a fiado dos “Provisórios” no Centelhas, e se terem acabado os “Definitivos”, ainda dariam para o bilhete do seu Esposende S.C..
O mais das vezes, ou entrava à borliú ao intervalo, ou, se queria ver o jogo de início, lá se entretia a fintar a Guarda na peregrinação costumada entre o Repouso e as traseiras do hospital, tentando ”filmá-lo” através das “objectivas” arredondadas do muro de suporte, aqui e ali com as pedras já desensaibradas pela intempérie.
- Pai…levas-me ao Esposende? Insistia Alex, puxando-lhe as calças.
- Cala-te para aí, rapaz. Não tenho dinheiro….
O puto desatou numa choradeira incontida que foi preciso a bênção da mãe para pará-lo.
- Pronto. O teu pai leva-te. – Acalmou-o a esposa, enquanto piscava o olho ao marido a fim de resolver aquele problema bicudo.
- Está calado, rapaz, vamos lá ver se o Porfírio te deixa entrar …
O campo de futebol “Padre Sá Pereira”, aí pelos anos 60, era a terra batida e a saibro, alisado à força de cilindro de granito que sulcava regos deixados pela chuva de Inverno e que asfixiava ervas daninhas e resquícios de juncos das faixas laterais, nos pontapés de canto.
Tinha pouca protecção quer para jogadores e juízes de linha, quer para a assistência. Delimitado por umas quantas barreiras “arquitectónicas” encaibradas e desconjuntadas por suportes de madeira de pinho do pior, fazendo denotar ainda os respectivos nódulos, estes serviam de ameaça quando os resultados ou a claque adversária alteava em demasia a voz. Para os árbitros, poderia ser sinónimo de “justiça de Fafe” se as “provisões cautelares” ou conversações de bastidores não chegassem a bom termo para convencer os juízes no alinhamento do melhor resultado, quando em fim de época se perfilavam subidas ou descidas dos clubes interessados em tal desiderato promocional.
A única bancada do lado poente era escassa podendo albergar menos de uma centena de pessoas, no seu máximo, e já então reservada aos sócios, gente geralmente da finesse pois a maioria ia para a claque do Peão. A Norte, árvores-austrália alinhavam-se para conter a barreira do vento forte que quando soprava fazia desequilibrar a contenda num ou outro balázio mais puxado que dava em golo, levando bola e guarda-redes contrário baliza dentro - quantos golos fantásticos foram marcados à conta da nortada! Para Sul, o muro desalinhado a cal hidráulica tinha várias guritas-olheiros que serviam os borlistas, enganada a Guarda-Republicana que não podia acudir a tudo, e que fazia paredes-meias entre o campo e o hospital, de modo que ninguém morreria por falta de assistência, malgrado as caneladas à mistura e outros mimos de ocasião no adversário, com vista grossa do árbitro. A nascente, funcionava, indistintamente, “superior” e “peão” e era aí onde a “pólvora”, por vezes, se inflamava mais entre as claques mas que quase sempre nos era favorável.
Naquele Inverno, já haviam desaparecido as marcações, a cal virgem, das balizas; nestas últimas, mal se vislumbrava a sua correcta esquadria original pois os rigores da estação já lhes encurvariam ao de leve os postes e a trave rectangulares, sofrendo ainda estas do martírio dos “coices” dos guarda-redes que tentavam sacudir a lama das chuteiras, restando do seu original uma coisa mais ou menos híbrida por se assemelharem agora à dos postes de telefone!
Entrada das equipas.
- Es…po..sendê ! Es…po..sendê ! Es…po..sendÊEEE !
Admirar aquele jeito malabarista do Jaime ao fazer rodopiar o esférico no seu dedo indicador direito, era digno de figurar nos anais circenses do futebol. Mais estranho haveria de parecer, durante o jogo, certas trivelas de alguns dos nossos craques que à força de jogarem descalços na Ribeira ainda estranhavam o luxo das chuteiras!
De olhos esbugalhados, Alex, após esgueirar-se para dentro do campo entre as pernas de dois “Golias” de Góios e das Marinhas, saboreou o melhor dos manjares, se é que os olhos, de alguma forma, também comem, pois essa tarde ficara-lhe indelevelmente na retina.
Nesse Domingo, encheu-se o “Maracanã” da vila para receber uma das formações mais simpáticas do campeonato, o Desportivo de Monção, onde imperavam nomes sonantes para a época tais como Tatá, Viriato e Tareta, entre outros, vestindo camiseta grenat e calção azul. O Esposende S.C., com o seu equipamento alternativo: branco debruado a vermelho.
Jogo disputadíssimo do princípio ao fim e que mediou com o lançamento de vários pombos-correios que seria suposto arribarem até às paragens alto-minhotas, talvez com a mensagem do resultado ao intervalo e mais veloz de lá chegar por este meio, dada à escassez de telefones.
Farol (g.r.), Monteiro, Zé da Vila, Passos, Russo, Pinto, Jaburu, Sotero, Losa, Jaime e Laguna, foram alguns dos craques e os heróis dessa tarde memorável pois inverteram um resultado negativo de 0-2 da primeira parte, num 3-2 final e que deixou a claque ribeirinha ao rubro. E que fantástica a exibição do Sotero e do Jaburu que fariam eclipsar o nosso galáctico CR9.
No final, a aclamação do “Pompa e Circunstância” do lado da bancada rivalizava com o “We are the Champions” do lado do peão e era delirante:
Es…po…sen…dê ….Es …po…sen…dê…Es…po…sen…dêêêêê!
Enquanto o Manel Monção sustentava no ar o Jaburú quase lhe provocando o badagaio pelo apertanço inusitado daquelas manápulas, a tia Micas fazia caretas aos monçanenses e abanando e levantando as saias da frente fazia rir às gargalhada de contentamento o pessoal da pesada dos “lobos do mar”.
Lá em casa, ao jantar desse dia, a fome pareceu menos dolorosa de enfrentar e Alex até teve direito a chupar umas pernas de caranguejo extras para se comemorar feito tão heróico do nosso Esposende S.C.

P.S. Este artigo romanceado pretende ser um preito muito humilde de homenagem a estes e outros jogadores que vestiram com orgulho a camisola do E.S.C.

domingo, 5 de julho de 2009

Contos extraordinários

Mais um conto extraordinário para o deleite dos nossos visitantes.
O nosso contista maior, retrata com maestria, com perfeição e no detalhe a vida do nosso povo.
O Max conta como nenhum outro os tempos da nossa velha infância. Nunca, ninguém, até hoje contou a vila de Esposende como ele conta. Os teus contos são um encanto para todos nós.
Muito obrigado Max.

A prova de(o) esforço - MAX

MAX
Alex ia-se até ao café mais próximo da sua cidade de adopção para entabular conversa com algum conhecido de momento quando alguém lhe tocou no ombro, por detrás.
- Oh nosso menino, tu não és o Alex?
- Sou sim …(?) Oh ti Man’el, então que o traz por estas minhas bandas?
- Olha, ando pr’á ‘qui meio perdido, quase há meia hora, pois não dou com o consurtóro onde se tiram uns exames e uma prova de força ao coração que o meu médico da Caixa me marcou para esta clínica. Sabes onde fica o raio desta rua?
Alex esboçou um sorriso e retorquiu:
- Não será uma Prova de esforço, ti Man’el?
- Eu sei-te lá dessas coisas. Bais ber que é isso!
- Não se preocupe, eu vou lá com o senhor, como assim os amigos são para as ocasiões. Venha daí.
- Obrigado. Isto d’uma pessoa ir nos oitenta e tais, já num atina lá muito bem. Sabes como é!
- Vai correr tudo bem.
Alex recordou aquele lobo-do-mar dos tempos da sua infância. Não havia pincel de Miguel Ângelo ou Rafael que o retratasse tão bem tanto quanto ele o conhecia, pela bravura no mar e pela forma honesta e honrada como sustentou a família numerosa, em tempos de tamanha miséria, e que obrigou à emigração de tantos outros braços, lá da terra, para Brasis, Franças e Alemanhas.
Já na espera do consultório.
- Então tem a “máquina” avariada? – sorriu-lhe Alex.
- A força já não é a que era, filho, mas parece q’inda tenho de correr nuns tapetes, ou lá o que é!? Se fosse no meu tempo, quando era mais novo, eu é que os fazia correr a todos. Já num sou da tua geração. Sempre vivi na nossa terra e o mar foi a minha escola. Quase num sei ler nem escrever mas tam’ém p’ra que é que isso me servia, lá no mar de Cristo?
- Tem certa razão. Mas os tempos também eram outros e a fome obrigava a sair mais cedo da escola …
Pois eu lembro-me bem do senhor. Parece que o estou a ver, a chegar ao cais naquela catraia vermelha, todas as manhãs. Quantas vezes me deu uma e outra faneca que eu fazia intenção de frisar bem à minha mãe que tinha sido da parte do ti Man’el e que aquela era para fritar, só para mim.
- Sabes que eu tinha bom coração. Num era como alguns pescadores e mestres que eram uns somíticos. Q’rio o céu e a terra. Lembro-se lá dos pobres!
- Oh ti Man’el, aquilo dantes devia ser mesmo miséria, não?
- Passaste-a lá tu, menino. Se soubesses o que foi fome. O que balia era o mar, quando ele nos deixava lá entrar!...
- Conte.
- Olha, eu, os falecidos João do Pão, o ti Emílio, o Alfredo da Mouca, o João do Frente, o Rogério, o Li e o filho, o João Careca – qu’inda está vivo – o David, o “Lunetas”, o falecido Zé da Lucas – que Deus o tenha em eterno descanso que era também muito bom home – e tantos outros, esses é que sabem o que foi passar larica!
Quando íamos largar, conforme o tempo deixava, naquelas catraiazinhas de quatro remos, ou numa ou outra maior que lebava sete homes mais o mestre, nós é que sabemos o que amargurámos naquele mar de Deus. Bem razão tinha o Zé da Lucas, ao chamar ingnorantes a esses ministros dum raio! Como é que a terra ‘inda há-de ter pescadores c’o a barra naquele estado, vão sustentar-se do ar e vento?
- E depois como é que era? – Indagou Alex mais curioso ainda.
- Olha, as redes ficavam lá mais duas ou três noites e, geralmente à terceira noite, nós íamos alá-las. E tornava-se a largá-las se o mar estivesse calmo. Se estivesse maresia, trazíamo-las p´ra terra. Depois o peixe era rematado lá no cais. Naquele tempo ‘inda as raias ero a dez mil reis!
- Mas como é que a campanha se reunia para ir para o mar?
- Tínhamos o moço dos seus catorze anos, acompanhado do pai ou da mãe, ele é que nos binha acordar a casa e à restante da campanha. Os moços recebio meio quinhão até chegarem a homes, já pelos seus binte anos. O mestre, de véspera, abisava que “amanhã vamos às rascas”. Atão, a campanha trazia a vela, a ustaga – um tipo de roldana –, o balde das chamas, – uns paus piquenos que se metiam nuns buracos para fixar os remos ao barco –, o cabo grande ou poitada, – para se dar fundo e parar a catraia no mar –, a cesta do mestre com agulha, – a bússola –, o lampião com vela pr’a se ber de noite. Roupa do corpo – quem a podia ter! – Era de japona, avental de lona que era curada com óleo de bacalhau, o suerte, – boina oleada – a …
Entretanto, a assistente do consultório chamou.
- Sr. Manuel da Silva … de Esposende. Entre para aqui para este gabinetezinho e espere um pouco.
(…)
Passada quase meia hora.
- Então, custou muito? – perguntou Alex.
- Cala-te, meu menino, eu até fiquei invergunhado quando a moça me quis rapar os pelos do peito e me pôs cá uns fios inléctricos na barriga que eu até punsei mal, pr’a que raio era aquilo!? Depois amandou-me para um tapete que começava a rolar mais depressa que as pernas e quase que me deu o bafo, parece que estava a subir o S. Lourenço e os raios de todas as caretas dos demónios do órgo da matriz a puxarem-me p’ra trás!... fôda-se que caiso adesmaei no consurtoro …
- Não se aflija. Isso é igual p’ra todos nesse exame da Prova de esforço. Vai ver que ainda vai poder correr a maratona!
- Sabes do que m’alembrei?
- Diga.
- Quando íamos aos figos ao Sebastião: fugíamos que nem ratos que o hóme era tolo quando nos apontava a caçadeira de chumbos!...
(…)
A caminho da camionete.
- Olha que até foi rápido, só não sei ao que binha, mas já passou. Agora tenho que pegar a caminheta do Linhares, ali na estação, mas já nem sei p’ra que lado fica!?
- É já ali. Eu vou consigo.
- Mas como te estava a contar… aquilo, para bir p’ra terra, num era fácil. Se o bento fosse leste ou sueste não conbinha muito porque empurrava a catraia p’rá sepurtura do mar. Em cada costura da vela tinha umas rises que, quando o bento era demais, a vela enrodilhava-se toda e era um “Ai Jasus”. Lá tinha que ser à força dos remos – alguns de nós tínhamos sempre as manápulas cheias de bolhas! – três de cada lado e o mestre, à ré, como hóme de leme.
- Ainda se lembra dessa malta do seu tempo?
- Atão num lembro, e que homes esses! O finado Laguna velho, o ti Américo, o Man’el Libra, o Man’el da Fanada, o Tóne Tuta, o Trocato, o João do Pinto, o Man’el Libano, o Feliz, o Miguel, o Chapuz, o Marcelino Cavalas, o Abilo Calica …
- E lá no cais?
- Aquilo, quando o S. Pedro ajudava, era peixe de toda a espécie. Nas rascas binho: raias, redobalhos, lagostas, lavagantes, caranguejos, peixe-sapo … Ao anzol, ero os congros e o espinhel. Nas linhas da faneca, de anzol pequeno, era uma farturinha. Depois havia as redes da lagosta, ou rascas de pedra, largadas em cima das pedras, no fundo do mar. Os cofros para o polvo, navalheiras, peixe-rosa, camarão, peixe-espada – que era pescado à mão com anzol e isco de marisco ou sardinha, ao pôr ou ao nascer do sol. As gigas de sardinha eram bendidas por lotes e cada uma debia ter à volta de umas duzentas sardinhas! Mas a sardinha era só de uma safra. Mais tarde, aparecero os tresmalhos de três redes e as redinhas pr´á faneca, badejo, pintas, robalos … agora é tudo mais fácil c’ os motores. Mas tamém te digo, como isto está, nem bale a pena ir ao mar, pr’a lá ficar!
- E as catraias não vertiam água nem inundavam com tanto peixe?
- Sabes lá tu! Quando o mar era alto, aquilo até podia dar p’ró torto e era preciso ter um hóme só pr’o bertedoiro, para escoar a água das cavernas. Era uma iscuridão tremenda, só alumiada pelo lampião de vela, suspenso num remo ou na vara grande, junto ou dependurado no mastro que serbia tamém pr’á nossa localização. Tinha mar de trinta a carenta jardas de profundidade!
As redes eram assinaladas com uma bóia marcada e bandeira da embarcação do mestre mas, às vezes, aquilo também era uma ladroaje do raio, mas a gente acabava sempre por saber quem foro os gatunos … cando num ero as traineiras e um ou outro arrastão que nos davam cabo delas.
Cando a campanha xigava à terra, depois da lota, partia-se o dinheiro, em casa do mestre, sentados no xão, com feijões, pois poucos sabio ler. Se o dinheiro era em notas daquelas grandes – atão as de cem mil réis parecio quase um lençol! - Ia-se ao ti António do sul, ao Loureiro, à Pastilha, à Siloca, p’ra se trocar. Vida de cão, aquela!
(…)
Chegados à estação de camionagem.
- Pronto, ti Manel. Já cá está. A que horas parte a camionete?
- É às seis, mas como é a do desdobramento e com todas aquelas boltinhas por Barcelos e c’o a gente da feira a entrar e sair, só lá pr’as sete e meia é que debo d’a chegar a casa! bou ber s’a minha Maria me deixou o presigo ou o resto da caldeirada …
- O quê? A carroça anda só a 30 à hora? Mais valia ter alugado a do Man’el Louceiro, ao menos a “gasolina” era à borla e os “fumos do escape” ainda serviam para adubo!
- Bem podes rir. Na era dos foguetões e dos TGVezes aquilo mais balia ir pró museu …
- Um abraço e até à próxima. Não se preocupe que a “máquina” ainda vai durar uns anitos!
- Deus ti oiça, filho, Deus ti oiça. Obrigadinho pela ajuda.
- Vá com Deus e faça boa viagem.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

A Comunhão Solene - MAX

MAX
Alex estava numa de sete cucos.
A mãe andava mais que preocupada e atarefada em arranjar-lhe fato alugado para a Comunhão Solene pois dinheiro era coisa que rareava lá em casa. De resto, poucos dos colegas de doutrina se dariam ao luxo de pôr fatiota nova, à excepção do filho do juiz e de uma ou outra moça filha de lavrante rico lá das redondezas.
Na formação dos gabirus para o retrato da praxe - alinhados à custa de uns penicões do “Fura”- sacristão que vestira a pele de sargento naquele domingo especial - este e aquele miúdo ainda destoava na sua camisolita simples com calça de fioco e a camisa branca estriada do ano anterior.
Pela enésima vez, o fotógrafo batera o “boneco” mas havia sempre algum que cegava ao flash e aquele outro que virava a cabeça para sudoeste, no momento de ficar relembrado para a posteridade. Alex lá se perfilou numa das duas filas de cima, entalado entre o “Cuco” e o Gonçalo, pois este, de tão alto e magricelas, na ponta do banco, fazia de trapezista para não tombar de lado, por qualquer rabanada de vento ou, mais receoso, se o “Atita” fazia músculo, para tentar mostrar o terço e o livrinho da comunhão, em cada mão, à boa maneira bíblica de Aarão. Nas filas de baixo, protegidas, púdicas de virgindade e ancoradas na santa Fé pelo arcipreste, as meninas pavoneavam-se nos seus vestidos de pré- noivas enquanto uma ou outra ia fazendo já olhinhos aos futuros namorados.
- Toca a olhar p’rá qui – berrava o retratista – … um e dois… três!
Mas o dia da Comunhão Solene fora tão só o culminar de horas e horas a fio de catequese, de Domingos e finais de tarde e só os mais assíduos haveriam de decorar todos aqueles credos. Já fora de prazo, ainda era preciso convencer o santo do arcipreste de que o garoto não pudera ir todos aqueles dias pois fora ajudar o pai, ao mar; e o reverendo lá se deixava ir na onda, se entretanto soubessem, ao menos, os Mandamentos da Santa Madre Igreja e, no mínimo, rezar o Acto de Contrição, para se poderem confessar. Após juras daquelas mães zelosas, lá se completou o número certo e necessário. Talvez que estes “últimos fossem os primeiros” aos olhos do Criador.
A catequese para o grande dia era repartida entre o salão por cima da sacristia e a nave da igreja que juntava o tutti para os cânticos da missa da Comunhão. Com a pedaleira do harmónio ao fundo para se sobrepor aos desafinanços dos “Ataus” e dos “Barriganas” que teimavam nos seus baixos rinocerônticos, o arcipreste bem que se esforçava por os fazer abafar nos sopraninos tímbricos das meninas que, essas sim, faziam concorrência ao coral dos Querubins e Serafins, lá nas alturas dos céus, e já estariam até na lista de espera de Santa Cecília, padroeira dos músicos, quando chegasse a hora delas! Desesperado pela barulheira, o bom do padre mandou o seu “sargento-mor” calá-los à força. O “Fura” não se fez rogado e distribuiu mais meia dúzia de croques naqueles contrabaixos inoportunos, que passaram, desde então, a afinar aos soluços, enquanto disfarçavam as lágrimas pelo K.O. técnico.
Quanto aos Mandamentos, Sacramentos e doutrina em geral, a prova dos noves ainda deixava muito a desejar:
- Então diz lá tu, aí ao fundo – inquiria o arcipreste – quem é a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade?
Responde o “Faztudo”:
- Num sei, Sr. Arcipreste …
- Não sabes? Vamos lá: Pai, Filho e …Esp….
- Esprito!?
- Valha-te Nosso Senhor Jesus Cristo! Espírito Santo!
Inquirindo outro malandreco, perguntou-lhe pelo “rei” dos apóstolos.
- É S. Paulo!? - Miou um dos “Gatinhos”.
- S. Paulo? Uma paulada merecias tu. De que lado és?
- Sou do sul, Sr. Arcipreste.
- Então, não há na vossa festa uma marcha bonita?
- Ah! É a marcha de S. Pedro!
- Vês como sabes? O “rei” dos apóstolos é então … (?) S. Pedro.
- Aí ao meio, tu, o de cabelo espetado – virando-se para o Rique das Voltas – diz lá os Sacramentos da Santa Madre Igreja.
- 1º Baptismo, 2º Confrimação, 3º‘Caristia, 4º P’nitença, 5º (?) Quinta Unção, 6º Orde e 7º Patrimóne!
Risada geral que só abrandou quando de novo o sacristão distribuiu mais uns tabefes secos à claque camuflada lá atrás, no último banco. Serenada a cambada, o santo do padre continuava o exame final da doutrina. Mudando agora de táctica, perguntava às moças:
- Ora então, diz lá tu, Maria da Luz, qual é o 1º Mandamento da Lei de Deus?
- Adorar um só Deus e amá-lO acima de todas as coisas!
- Muito bem, menina. Vêem rapazes, quem tem vindo à catequese nunca esquece!?
Como podia Alex esquecer também aquela alma de verdadeiro exemplo de caridade cristã que a todos dera já um empurrãozinho para encostá-los à porta do céu? Como não lembrar aquelas traquinices em que a brincar se aprendia o sério da vida e o alimento do espírito, mesmo que com a fraqueza do corpo pela fome de então?
A esta mesma hora, lá no alto, Santa Cecília deverá estar com os mesmos problemas a tentar ensaiar com alguns destes gabirus!...

quinta-feira, 11 de junho de 2009

A escola - Max

MAX
Debatiam-se, no Conselho de Turma, os prós e contras para transitar o “Bravo” – nome de guerra por que era conhecido na escola o Barbosa. O seu cardápio escolar, mais longo que o último episódio de novela TV, em participações de todo o género, primava pela falta de educação e expulsões várias. A perspectiva de avaliação final de ano apontava para as já esperadas oito negas, não fora a complacência de um ou outro professor que destoou do grupo, pela atribuição da positiva mínima.
A alcunha viera-lhe do apelido que ele teimava em escrever – Bravosa - pois a sua configuração física destoava do normal da turma de dez e onze anos e onde, como em camisa de sete varas, o obrigaram a ter de fazer parte. Protagonizaria, por tal motivo, cabeça de cartaz, em decisões de litígio de recreio, já para não falar dentro da sala de aula que constituía o teste supremo, para qualquer professor que, a ser ultrapassado, poderia candidatar-se à santidade dos altares, tal a paciência exigida para com este sobredotado.
Com 16 anos bem maduros, as capacidades cognitivas do “Bravo” mostraram-se pouco acima do limiar zero do Q.I.. O Conselho continuava com o dilema, temendo que mais um “chumbo” conduziria este “iluminado” ao abandono escolar. Um professor sugeriu que o transitassem pois enquanto permanecesse na escola não faria razia lá fora; razões extra, de pais separados e alcoólicos e a proximidade ao tabaco e à droga, vieram à baila e a tripla retenção acabaria por corromper a próxima turma onde recaísse. O Conselho concordou com a sua passagem, ao abrigo do tal artigo, avolumando cada vez mais a santa ignorância deste país, de resto bem patentes nas “Novas oportunidades” onde, de uma assentada, se fazem doutores à pressão !
Mas o caso não se ficou por aí, pois, logo mais, em nova reunião de um outro Conselho de Turma, um encarregado de educação não se convenceu de todo com os argumentos do Conselho, pela obrigação do filho em ter de marcar passo no mesmo ano, idealizado que tinha para o seu primogénito um projecto de engenheiro, teimando que o filho haveria de acabar os estudos em doutor-engenheiro. A Ordem porém deliberara que o pequeno “Eiffel” tinha ainda muito tempo para rever os cálculos dos alicerces para as futuras pontes, pois as actuais caíram por terra, tal a ferrugem por tanta ignorância supina acumulada. E o assunto ficou definitivamente encerrado.
Alex reviu os seus tempos de escola primária onde, sem tantas reuniões, as coisas funcionavam com eficácia salomónica. To be or not to be, passar ou não passar de ano era um ponto de honra a defender pois a “raposa” era estigma duro de suportar; o insucesso andava associado, não à falta de inteligência da criança mas à fuga da escolaridade, por ter de ajudar-se a família ao provento do dia a dia.
Recordou então os “Passarinhos”, os “Gatinhos” e os “Morrosóis” que coitados, mal se resguardavam daqueles frios invernosos, em farrapos e andrajos de ocasião que fingiam proteger corpos magricelas de geração de crianças grandes. Por isso, o pó das carteiras ia-se avolumando com as suas ausências, requisitados ao mar, em catraias “cascas de nozes” que não era suposto arribarem ao cais cada manhã. Outras vezes, ainda ensonados da faina marítima, anestesiada a fome com o naco de pão bolorento e a tigela de caldo de couve e massa esbranquiçada, tentavam afinar à tabuada, enquanto endireitavam a caligrafia pelas linhas do caderno ou (des) convertiam metros a centímetros, sob a ameaça da palmatória do professor fazer os respectivos acertos nas suas já calejadas mãos.
Naquele tempo, a cana comprida do mestre sibilava-lhes ao redor das cabeças fazendo-os acordar para as regras de comportamento, para os cursos dos rios e linhas-férreas a decorar. Ai que se queixassem em casa pois ainda tinham dose a dobrar! A escola ensinara-lhe certos valores, como a amizade, a solidariedade e o respeito quase sacrossanto pelos pais e professores.
Vieram-lhe à memória aquelas Quartas Feiras em que a sala de aula virava tribunal e em que a “Santa Catarina” transformava as suas mãos em tachos de estrelar ovos e nem cabelo de cavalo com azeite ajudava a tornear a dor, enquanto grossas lágrimas escorriam pelos “crimes” cometidos: quatro erros no ditado, por confusão dos ésses dos botões cosidos com os zês das fanecas cozidas; dois problemas errados, na aritmética, por se ter roubado mais ao quilo do algodão que ao litro do vinho tinto. Se era na História, cometera-se o sacrilégio de alterar a cartilha, confundindo-se o rei Gordo, D. Afonso II, a plantar o pinhal de Leiria, enquanto D. Dinis, O Lavrador, distribuía mais umas sacholadas valentes no costado dos mouros, ganhando para Portugal a quinquagésima batalha desde O Conquistador. A coisa ficava ainda mais feia na Geografia do Reino de Camões, quando alguém desviava o Cávado do seu leito para o desaguar ali para os lados do Forte de Viana, com comentários críticos do professor quase a merecerem prisão no dito cujo. E que dizer então das linhas férreas onde a ignorância da petizada fazia até descarrilar comboios, pelo desvio das agulhas ou, quando aquele mais sabido, direccionava a Linha do Norte para um apeadeiro desterrado na fronteira de Espanha, pondo em perigo até a unidade nacional!?
No tribunal das Quartas Feiras, uns tantos sujeitavam-se à dose suplementar da palmatória, por riscos nas carteiras, salpicos de tinta permanente no soalho, quebra de vidros da sala com a bola de farrapos ou bexiga de boi de matadouro, porrada com colegas, surripianços de ardósias dos vizinhos de carteira, entre outros crimes!
Nessas ocasiões, a professora também lhe ensinara, no Canto Coral, o Hino Nacional, o Não vás ao mar Tonho, as Pombinhas da Catrina e tantas outras canções que eram disputadas em altura tímbrica com os mais velhos já conhecedores de todo o reportório coral, por repetências acumuladas. Ninguém estranharia sequer as mudanças de vozes de alguns “Pavarotis”, do garnizé ao galináceo mais apurado, camuflados atrás do coro, que de boca aberta fingiam-se aos barítonos e baixos. Havia ainda quem as fizesse pela calada, em incursões aos bolsos dos calções, disputando uma e outra perisca, apanhada no passeio da rua e a ser fumada na retrete da escola, no intervalo seguinte. Se a dita cuja não chegava para todos, dividia-se irmãmente o prazer e assim enquanto os mais velhos fumavam o “charros”, os demais iam treinando nos cigarros de barba de milho!

terça-feira, 2 de junho de 2009

A lota - Max

MAX
Ali para os lados do Salva-Vidas, arrematava-se, alto e bom som, a última faina da faneca, acamada em gigas, e que se multiplicava no inclinado do cais. Em seu redor, o mestre da catraia, qual contra tenor de cantata, dava começo à sinfonia da lota, vociferando e inflacionando a pescaria, à boa maneira marroquina:
- Dá trinta mil réis …dá trinta mil réis …
Peixeiras experimentadas, enroladas de xailes pretos e socos a condizer ou descalças e pés calejados por tanto quilómetro batido às aldeias vizinhas de Gandra, Forjães, Vila-Chã e até Barcelos, ou charrete até Braga, acalentavam a cantilena do mestre Sampaio e iam inflacionando o preço com mais uns mil réis acima, logo contrariadas pelas mais endinheiradas que, em jogos de olhares, já tinham por garantido o peixe pois eram as que pagavam logo e na ocasião. Estas limitavam-se a esperar pelos últimos lances.
Umas, faziam alarde do seu poderio económico, visível nos seus brincos à vianeza, cordões e gargantilhas de ouro, ícones de uma viuvez bem sucedida pelo lucro nas partes dos tresmalhos e das catraias que os falecidos lhes deixaram por testamento. As outras, que tinham de fazer pela vida, ainda teriam que revender o peixe, alinhado nas gamelas, nas aldeias mais próximas de Fão, Marinhas, Castelo, fizesse sol ou chuva, para pagarem, à noite, ao mestre.
- Dá trinta mil réis …dá trinta mil réis – perante o silêncio, o Ti Sampaio parece chateado – Então, caralho, ninguém quer esta faneca vivinha da costa?
- Trinta e quinhentos – arrematou a Caravelha.
- Dá trinta e quinhentos, trinta e quinhentos, uma… trinta e quinhentos, duas…
- Trinta e sete – sibilou a Silvana.
- Porra, mulher – atacou a Ondina – p’ra que é tanta ganância, vais vendê-la toda em Gandra?
Riposta aquela:
- Olha, vai mais é à merda, o que é que tens com isso?
- Dá trinta e sete – alteava o Sampaio, alheio aos “elogios” entre as comadres – trinta e sete mil réis, uma … trinta e…
- ‘cárenta – destoou a voz da Torcata.
- Dá ‘cárenta mil réis …
- ‘cárenta e quinhentos – vociferou a Siloca.
- Gananciosa – atirou a Tina da Solha – mete-o entre as pernas … sua …
De imediato, aquilo pareceu dar bronca e sentia-se no ar que não ia acabar bem. Contidos os ânimos, atacou o velho lobo-do-mar:
- Dá c’árenta e quinhentos, uma… c’árenta e quinhentos, duas … – crescia a expectativa –, c’árenta e quinhentos, tr…
- ‘cárenta e seiscentos – fez subir voz desconhecida, o que provocou o espanto das peixeiras da terra.
- Queres ver esta – Murmurou a Ondina – são da Póvoa ou do Castelo?
- Dá c’árenta e seiscentos, uma … dá c’árenta e seiscentos, duas … dá c’árenta e seiscentos, três …(?). Rematado.
Seguiu-se o congro, a raia, o peixe-sapo, o peixe-rosa, o peixe-espada, o rodovalho, e por fim, os crustáceos: lagosta, arola, caranguejo, lavagante …
Noutros tempos, a cantilena era a mesma e, agora como então, também se esperava que arribassem ao cais as catraias dos Sr. dos Passos do mestre Feliz, da Nª. Sra. da Saúde do Calica, da Sra. Das Dores do Libra e do S. João da Barra do Torcato, entre outras. Gente de pescadores, que fazia ofício do mar, haveria de continuar a rematar a faina daquelas catraias puxadas à força de remos e da ajuda das velas, quando o vento estava de feição, ou dos menos endinheirados, com os seus barquitos com os quais um tossir mais forte do mar tanto luto trouxera a viúvas da terra.
A canalha já se habituara aos cognomes dos mestres e das peixeiras e quando se falava de Doninhas, Nazarés, Micas Catanas, Silocas, Adelaides, Marias e Chitas Batatas, Ti Anas Brancas, Marias Cachuchos, Isabéis Caveiras, Galgas e Pequeninas, entre outras, era sinónimo de respeito e quase a merecerem bustos de bronze, ali pró Sul ou Central, se houvera na ocasião comemorações e medalhas do 10 de Junho e os mil réis necessários para pô-los de pé. Sim, que de estátuas e figuras públicas a vila estava quase desnuda, não fora o poeta, para os lados da Câmara, e um tal de Rodrigues Sampaio, que, de tantas mudanças e rodriguinhos ainda hoje se pasma não ter sofrido um torcicolo.
Alex e os amigos do Norte subiram, vezes sem conta, o farolim do torreão da alfândega e toparam-lhe o gosto das alturas, tentando alcançar aquela luzinha vermelha, colocada bem lá no topo da escadaria de ferro e que, segundo ouvira a certos pescadores, servia de azimute, por alinhamento no mar alto, aos locais onde havia mais peixe. Das primeiras vezes, acagaçara-se todo naquela escalada pois, atrás de si e numa disputa do empurra à marrada, a fila dos amigalhaços forçava o do alto a arribar sempre ó p’ra cima daquela Eiffel que, em chegados, constituía a prova de fogo para ser aceite no grupo, com honras de guiness, se, entretanto, o Lázaro fiscal não os esperasse cá em baixo, para umas valentes bordoadas!...
Se a sineta tocava três vezes, era sinal de naufrágio e, então, o alto do farolim e o torreão do Salva-vidas do Ti Abílio eram disputados, ao binóculo, para alcançar o azimute da tragédia e calcular, a olho nu, as milhas que separavam os náufragos da terra. As aflições aconteciam, sobretudo, à saída e à entrada da barra, quando as catraias vinham carregadas e a maré as empurrasse para dentro ou para fora. Descia, então, o Salva-vidas dos seus trilhos ensebados pelas vísceras da peixaria que restara da lota anterior, sendo puxado, à força de remos, por homens que substituíam a tropa pelo serviço voluntário, pagando a correspondente taxa militar.
Umas vezes, a tragédia era suavizada pelo retorno dos homens, outras, a vila via aumentar o rol das viúvas, pelos familiares naufragados, e cujo único sustento era o próprio mar.
No terço da tarde, o velho arcipreste sarava as dores e desavenças de uns e outros pelo recontar das Ave Marias e Padres Nossos que desfilavam pelos dedos calejados desta gente que se mantinha unida pela fé e esperança em dias melhores.
Talvez que já amanhã, no milagre repetido de uma pesca milagrosa.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

A inundação - Max


Max
No torreão do Salva-Vidas, o saco preto obedecia a uma sinalética para os pescadores. Se este se apresentava de pernas para o ar, significava que o vento soprava de sudoeste. Se aparecia uma bola preta, este soprava de Oeste. Na ocasião, a sua postura era prenunciadora de mar alto e mau tempo, com a barra fechada à navegação.
Nesse dia invernoso de Fevereiro, a chuva fustigou por demais a orla marítima. Madrugada dentro, coriscos e trovões abanavam as ténues casitas da Ribeira. Durante toda aquela santa noite, Alex não conseguiu pregar olho e enrolou-se, cheio de medo, por entre os míseros cobertores que cobriam ainda a nudez dos pais.
- Minha Nossa Sra. da Bonança – ouviu rezar a mãe – fazei-de abrandar a tempestade!...
O pai, acordado e sobressaltado pelo último relâmpago da borrasca, acendeu o velho candeeiro a petróleo, na cabeceira da cama, logo espalhando sombras fantasmagóricas pelo teto fora e exalando um cheiro familiar, anestesiando, de imediato, meia dúzia de pulgas, nos já rasgados lençóis. Foi-se dar uma olhadela pela janela do mirante e torceu o nariz, pois a tempestade estava brava, fustigando, de sudoeste, as vidraças, aqui e ali já meias alanhadas e tapadas a betume. Duas pingas teimosas tinham já furado o soco de madeira e escorriam soalho fora.
- Vou lá abaixo buscar um alguidar para aparar esta água – rosnou para a mulher.
- Vai, mas anda depressa que eu até tenho medo. Que farão esses desgraçados dos pescadores por esse mar adentro!? Ouve lá, a campanha do tio Tuta não saiu para as rascas?
- Não sei mulher, com este mar de Cristo quem é que se atreve a desafiar o Senhor? Vou descer para remediar isto. A propósito, não tens umas rodilhas para enxaguar a água?
- Estão ao pé do cântaro, ao lado da máquina de petróleo.
Para não ficar com a casa às escuras, por medo do rapaz, o pai tentou acender o toco de vela de estearina da Sagrada Família, que, com a humidade dos fósforos, teimava em não dar-se à luz, sendo preciso recurso ao isqueiro de pederneira. Desceu as escadas com o candeeiro, nas ceroulas de flanela, para o ofício entre mãos. Quando chegou ao pé da porta, ficou atónito com o que vira:
- Mulher – berrou – anda cá abaixo depressa que a casa está toda inundada! Traz-me aí as botas de água que isto mais parece um rio!
A cozinha tinha já uns bons 20 centímetros água acima, pela maré viva do rio, a que se juntara também o lodaçal da chuva. Duas ratazanas assustadas tentavam nadar para porto seguro pois os buracos apodrecidos do rodapé já não inspiravam grande confiança. A velha gata Tirone empoleirara-se na mesa de jantar, e de pelo eriçado, temendo talvez pela sua sétima e última vida, arremessara, borda fora, os garfos tridentes de ferro, acabadinhos de brilhar e esfregados a cinza de véspera, e as colheres de alumínio, do presigo do jantar.
Um cheiro a maresia empestou o corredor enquanto o penico do quarto boiava de um lado para o outro imitando o Titanic em naufrágio. Pelas frinchas da porta da frente, a corrente ameaçava invadir cada vez mais o resto da casa, não foram umas rodilhas e farrapo de cuecas velhas fazerem tampão, minimizando os estragos. A mãe, em camisa de noite, acorrera e perante o cenário, faltou-lhe a respiração e quase desmaiara.
Rua fora, ouviam-se pedidos lancinantes de socorro, enquanto rafeiros assustados pareciam periscópios, tentando emergir à tona da maré. Mais além, porcos, gatos, galinhas e coelhos de criação boiavam à deriva, já mortos.
Para os lados da capela de S. João, os juncos não resistiam à fúria das águas e vergastavam de tal forma as costas ao santo que o coitado bem que lhe apeteceu voltar de novo ao deserto, a comer gafanhotos e mel silvestre!
Entre portas, recitavam-se ladainhas a todos os santos e mais alguns; esgotadas estas, rezavam-se rosários completos à Senhora da Saúde e dos Navegantes, cheios de convicção e fé religiosa. Também o Senhor dos Aflitos não escapou a tanta invocação e poderia estar certo que não lhe haveriam de faltar mais velas na sua capelita, ali para os Bombeiros velhos, por tanta promessa feita nessa noite. Até os Romões invocaram a Bíblia, no Noé da família, para fazer descer as águas!
Qual quê?
Nas 7 casas dos pobres de S. Vicente de Paula, a situação era desoladora:
- Valha-nos o Senhor dos Aflitos, lá boiaram os tabuleiros das linhas da faneca e o espinhel do congro do meu hóme – gritava a Maranhona.
Ao lado, os Quintinos assistiam ao último milagre dos seus Santos Antónios de granito pois estes ainda resistiam ao dilúvio e, mesmo com água pelo pescoço, permaneciam de pé e inquebrantáveis na sua fé. Valera-lhes, talvez, terem pregado aos peixinhos!
Mais aflita, chorava a Mariquinhas:
- Ai, minha mãezinha, quem nos acode que a maré está-me a levar tudo de casa. Lá se foi o meu porquinho!
- Meu rico Sãojoanzinho, valei-nos nesta aflição – implorava a do Airinhos – afogaram-se as minhas ricas galinhinhas!...
Uns vaticinavam até que se estava no fim do mundo. Mais em surdina, alguém invocava as bruxas ainda vivas – as mortas quiseram lá saber! - E afiançava-se até que por ali passara procissão de defuntos!
Vade rectro!
A tempestade não parava.
Horas depois, lá chegaram os Bombeiros que pouco mais puderam fazer que acudir aos vizinhos mais necessitados e arredar o lodo e o lixo das ombreiras das portas. Tentaram, em vão, desobstruir os aquedutos entupidos mas a corrente dificultava-lhes a missão. A escuridão era total por falta da lâmpada fundida do único poste que, de tão inclinado, ameaçava também abater-se. Os faróis do carro de socorro varriam, noite fora, outros fantasmas nos xailes pretos do mulherio da vizinhança, que passou toda a santa noite desperta, tal o medo por algum desastre maior.
- Sta. Bárbara (…) R/ Ora pro nobis – prosseguia ainda a ladainha numa das casas, frente aos quadros dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria.
No dia seguinte, foi o contabilizar dos prejuízos, avolumando ainda mais a miséria desta gente.