A mula desaparecida….
O verão, nos finais da década de sessenta, entrou com todo o seu esplendor na então vila
de Esposende, numa segunda feira , dia
de feira semanal, que estava instalada no Largo Rodrigues Sampaio,
estendendo-se pela ribeira onde um camião repleto de cobertores, lençóis e
outros artigos, acabava de chegar, junto aos varais, com o vendedor a exercitar a garganta para
rematar os produtos vendidos ao
desbarato, com ofertas aliciantes embora de qualidade suspeita!: “levem dois
cobertores, que ofereço um guarda-chuvas”, leiloava o vendedor com toda a sua
energia “gargantal”…
O gado
espalhava-se pela ribeira, sendo negociado e vendido, com os maços de nota a
saírem dos bolsos dos “pastores” dessa época…
As feiras
quinzenais enchiam-se de “gentes” que compravam um grande manancial de produtos: fazendas,
colchetes, rendas, lençóis, samarras, sapatos, socos, chancas, fervedores,
panelas de aluminio e de ferro, regadores, louças…
Na
barraca/tenda da jandirinha, amontoavam-se os clientes habituais de Góios , Palmeira e Marinhas,
adquirindo metros de tecido- flanelas, popelines, gangas, setim,…- ou outras
miudezas -colchetes, alfinetes, “espiguilha”, agulhas- e as algibeiras
enchiam-se de notas de vinte escudos e de cinquenta mas, as moedas
proliferavam, dentro da rendilhada e colorida algibeira da Jandirinha, feita na
sua velha máquina Singer ou na lustrosa
Oliva, comprava ao senhor Porfírio Gomes-, representante dessa marca…
Em
piquete, esperavam pelo final da feira, os varredores da Câmara: Daniel (Daniel
Rodrigues Santamarinha), Zé da Vila (José Rodrigues Ferreira) e o Domingos de
Gemeses (Domingos Oliveira Monteiro) que “conduziam” os seus carrinhos, sempre
com as vassouras em acção. No camião, um velho Toyota, o António Morgado,
recolhia o lixo que era depositado num terreno, onde hoje se localiza o
Modelo/Continente, estávamos no ano de 1968.
No
armazém/mercearia/tasco do Abilio Coutinho começava a azáfama, com um movimento
frenético, com os lavradores a venderem os seus feijões (mistura, apatalado,
riscado, moleiro, branco, vermelho…), milho que eram ensacados para mais,
tarde, serem transportados para Famalicão nos camiões do Cibrão.
Esses
sacos, eram levados para os camiões, por
duas pessoas, usando as forças dos seus
braços e o Abilio Coutinho, tinha sempre ajudantes à mão (Ilhoca, Rogério, Tio Alfredo
da Mouca, Zé da Lucas, Pesinho…) que a
troco de duas malgas de vinho, faziam esse serviço todos entusiasmados.
O
Lourenço, esse, com os seus óculos “híper-graduados” apenas, dava orientações
porque trabalhar, não era com ele….Apenas fazia recados, levando encomendas
para as farmácias Monteiro e Gomes e, algumas vezes, para a Nélia-jornais…-
recebendo a sua gorjeta da ordem cinco croas – e uma tigela de sopa da Tia
Alice.
Às
segundas-feiras, sem feira, vinham as moleiras da Abelheira com as sua mulas
trazendo a farinha para a loja do Coutinho que em troca, dava-lhe o milho para
posterior moagem. Essa mesma farinha era vendida na loja ao quilo, em cartuchos, para fazer sopa ou mesmo pão e a
Padaria da Lucas, sita ao lado dos Bombeiros antigos, era uma das clientes do
Abilio Coutinho.
O
Carlinhos à porta da loja, esperava pelas moleiras Tila, Maria, Eva e o impávido Álvaro dos “mil homes” que desciam,
por um estradão irregular e escorregadio, ladeado de amieiros, da Abelheira com os muares, carregados de
farinha para descarregar à porta do Coutinho.
Na
vizinha Delegação Marítima, o agente e “bonacheirão” Lázaro apreciava o
descarregamento da farinha e o cansaço dos animais…
Chegadas ao
armazém, as moleiras prendiam as mulas,
numas argolas de ferro, fixas na parede,
desapertavam o “arrocho” da “solha (longa
tira de cabedal que apertava os sacos) e a farinha era metida no
armazém/mercearia, numas caixas de
madeira, onde os corrimões esperavam entrar em acção….
Descarregada a farinha, carregava-se o milho
para nova moagem e as desgraçadas mulas, lá iam outra vez, sobrecarregadas,
para os moinhos e azenha do moleiro Sebastião na Abelheira.
Num desses dias, a moleira foi levar a
farinha ao Vila Verde, loja/armazém no sul de Esposende e prendeu a burra com uma grossa corda, a uma argola,
incrustada na parede desse
estabelecimento. O Zé da V. encontrou o momento ideal para atuar e desatou o
muar e levou-o para o antigo mercado municipal de Esposende, nas vizinhanças do Marino, ensaiando mais uma
das suas peripécias de malandrice. A Eva, moleira experiente, ao sair da loja não viu a sua mula e entrou em
desespero e quase em pânico, com o Zé da V., junto à mercearia do Francisco
Areias, a observar os acontecimentos…
Eva, o
que te aconteceu, perguntou o Zé da V. com um ar naturalmente manhoso, mas
discreto….
“Olhe”,
levaram-me a minha rica moleirinha e dava cinco croas a quem a encontrasse,
prometeu a preocupada moleira, com um semblante pesado.
Ò mulher,
eu vou procurá-la porque desconfio que um lavrador de Góios ia em cima dela,
perto da Havaneza….
Prometo-lhe
cinco croas se a trazer aqui, prometeu a Eva ao Zé da V.
O Zé da
V., em grandes passadas, mandou esperar a Eva, junto à carunchosa porta do
armazém do Vila Verde, e foi ao mercado buscar a mula que comia umas couves e
uns grelos amarelos deixados pelas
lavradeiras das Marinhas.
Passados, uns minutos, lá veio o Zé da V., com
a mula, com o arroxo pendurado, na albarda, e entregou o animal ao seu legítimo
dono, recebendo as cinco croas de alvíssaras e já na posse do ”vil metal”, foi
em grande correria para o Marino, beber umas malgas com o Daniel que já sabia
da malandrice do Zé da V., um astuto
estratega a beber umas tigelas à custa da ingenuidade de algumas pessoas
das nossas aldeias (freguesias).
A Eva
lá contou a história aos irmãos na Abelheira, elogiando a coragem e a esperteza
do Zé da V. que ficou a ser um ídolo para a moleira porque seria impensável
chegar ao moinho sem mula…
Esposende, 17 de Janeiro de 2017
(Entrevistas com a
Eva –Abelheira- , António Morgado-Gandra-, Lurdes Miquelino, entre
outros entrevistados
“Pescador de
histórias”