"Esposende tinha duas almas: a do sul, que era piscatória, e a do norte, que era banhista. Uma era feita de gente natural e misteriosa, com dramas e alegrias rápidas, como se um vento cínico e audaz, vindo de muito longe, talhasse a sua história. A alma do sul já existia quando o reizinho D. Sebastião jogava às laranjas com os seus cortesãos – e as comia. Porque o príncipe era guloso; em apetites de mesa e arrancadas de estribo perdeu a vida, e nós a independência e a lei dela. O que lá vai, lá vai! Quando eu fui pela primeira vez a Esposende, achei que sucedia alguma coisa de solene; como um rito. Era em Julho. Nas noites em que o calor abrasava, vinha do rio um hálito de vasa. Como se o princípio do mundo rompesse o cristal das areias e borbulhasse uma vida espessa e cega, no lodo. A motora do peixe descia pela corrente, os homens iam calados. Via-se o casco na linha da água, como uma faca abrindo a pele da noite. Os cães ladravam. A alma do sul estava acordada. Desde tempos muito antigos ela tinha aquele pacto com o mar sobrevivia nos seus flancos, paciente, lentamente, ajustada à magra colheita de peixe e sargaço. A alma do norte floresceu um dia, construiu nos pinhais um chalé branco, pôs-lhe um azulejo azul, botou patamar e alpendre à moda de mestre Raul Lino. Plantaram-se tamarizes na avenida; alguma dama do seu mirante aprendia piano com uma senhora do Porto, e tinha um chapéu com cerejas maduras. Distinguia-se; a sua gola de valencianas ficava cheia de grãos de areia quando ela saía à rua. Os banhistas eram gente de Braga e de Barcelos, de gostos moderados, clericais, fechados. (...) A alma do sul despertava com as primeiras roçadoras de caruma, tingidas de nevoeiro. Vinham em passo trotado, entravam nas bouças, e a geada quebrava sob seus pés. (...)
Augustina Bessa-Luís, in Vila e Concelho de Esposende - IV Centenário 1572-1972. Memória de Esposende