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Debatiam-se, no Conselho de Turma, os prós e contras para transitar o “Bravo” – nome de guerra por que era conhecido na escola o Barbosa. O seu cardápio escolar, mais longo que o último episódio de novela TV, em participações de todo o género, primava pela falta de educação e expulsões várias. A perspectiva de avaliação final de ano apontava para as já esperadas oito negas, não fora a complacência de um ou outro professor que destoou do grupo, pela atribuição da positiva mínima.
A alcunha viera-lhe do apelido que ele teimava em escrever – Bravosa - pois a sua configuração física destoava do normal da turma de dez e onze anos e onde, como em camisa de sete varas, o obrigaram a ter de fazer parte. Protagonizaria, por tal motivo, cabeça de cartaz, em decisões de litígio de recreio, já para não falar dentro da sala de aula que constituía o teste supremo, para qualquer professor que, a ser ultrapassado, poderia candidatar-se à santidade dos altares, tal a paciência exigida para com este sobredotado.
Com 16 anos bem maduros, as capacidades cognitivas do “Bravo” mostraram-se pouco acima do limiar zero do Q.I.. O Conselho continuava com o dilema, temendo que mais um “chumbo” conduziria este “iluminado” ao abandono escolar. Um professor sugeriu que o transitassem pois enquanto permanecesse na escola não faria razia lá fora; razões extra, de pais separados e alcoólicos e a proximidade ao tabaco e à droga, vieram à baila e a tripla retenção acabaria por corromper a próxima turma onde recaísse. O Conselho concordou com a sua passagem, ao abrigo do tal artigo, avolumando cada vez mais a santa ignorância deste país, de resto bem patentes nas “Novas oportunidades” onde, de uma assentada, se fazem doutores à pressão !
Mas o caso não se ficou por aí, pois, logo mais, em nova reunião de um outro Conselho de Turma, um encarregado de educação não se convenceu de todo com os argumentos do Conselho, pela obrigação do filho em ter de marcar passo no mesmo ano, idealizado que tinha para o seu primogénito um projecto de engenheiro, teimando que o filho haveria de acabar os estudos em doutor-engenheiro. A Ordem porém deliberara que o pequeno “Eiffel” tinha ainda muito tempo para rever os cálculos dos alicerces para as futuras pontes, pois as actuais caíram por terra, tal a ferrugem por tanta ignorância supina acumulada. E o assunto ficou definitivamente encerrado.
Alex reviu os seus tempos de escola primária onde, sem tantas reuniões, as coisas funcionavam com eficácia salomónica. To be or not to be, passar ou não passar de ano era um ponto de honra a defender pois a “raposa” era estigma duro de suportar; o insucesso andava associado, não à falta de inteligência da criança mas à fuga da escolaridade, por ter de ajudar-se a família ao provento do dia a dia.
Recordou então os “Passarinhos”, os “Gatinhos” e os “Morrosóis” que coitados, mal se resguardavam daqueles frios invernosos, em farrapos e andrajos de ocasião que fingiam proteger corpos magricelas de geração de crianças grandes. Por isso, o pó das carteiras ia-se avolumando com as suas ausências, requisitados ao mar, em catraias “cascas de nozes” que não era suposto arribarem ao cais cada manhã. Outras vezes, ainda ensonados da faina marítima, anestesiada a fome com o naco de pão bolorento e a tigela de caldo de couve e massa esbranquiçada, tentavam afinar à tabuada, enquanto endireitavam a caligrafia pelas linhas do caderno ou (des) convertiam metros a centímetros, sob a ameaça da palmatória do professor fazer os respectivos acertos nas suas já calejadas mãos.
Naquele tempo, a cana comprida do mestre sibilava-lhes ao redor das cabeças fazendo-os acordar para as regras de comportamento, para os cursos dos rios e linhas-férreas a decorar. Ai que se queixassem em casa pois ainda tinham dose a dobrar! A escola ensinara-lhe certos valores, como a amizade, a solidariedade e o respeito quase sacrossanto pelos pais e professores.
Vieram-lhe à memória aquelas Quartas Feiras em que a sala de aula virava tribunal e em que a “Santa Catarina” transformava as suas mãos em tachos de estrelar ovos e nem cabelo de cavalo com azeite ajudava a tornear a dor, enquanto grossas lágrimas escorriam pelos “crimes” cometidos: quatro erros no ditado, por confusão dos ésses dos botões cosidos com os zês das fanecas cozidas; dois problemas errados, na aritmética, por se ter roubado mais ao quilo do algodão que ao litro do vinho tinto. Se era na História, cometera-se o sacrilégio de alterar a cartilha, confundindo-se o rei Gordo, D. Afonso II, a plantar o pinhal de Leiria, enquanto D. Dinis, O Lavrador, distribuía mais umas sacholadas valentes no costado dos mouros, ganhando para Portugal a quinquagésima batalha desde O Conquistador. A coisa ficava ainda mais feia na Geografia do Reino de Camões, quando alguém desviava o Cávado do seu leito para o desaguar ali para os lados do Forte de Viana, com comentários críticos do professor quase a merecerem prisão no dito cujo. E que dizer então das linhas férreas onde a ignorância da petizada fazia até descarrilar comboios, pelo desvio das agulhas ou, quando aquele mais sabido, direccionava a Linha do Norte para um apeadeiro desterrado na fronteira de Espanha, pondo em perigo até a unidade nacional!?
No tribunal das Quartas Feiras, uns tantos sujeitavam-se à dose suplementar da palmatória, por riscos nas carteiras, salpicos de tinta permanente no soalho, quebra de vidros da sala com a bola de farrapos ou bexiga de boi de matadouro, porrada com colegas, surripianços de ardósias dos vizinhos de carteira, entre outros crimes!
Nessas ocasiões, a professora também lhe ensinara, no Canto Coral, o Hino Nacional, o Não vás ao mar Tonho, as Pombinhas da Catrina e tantas outras canções que eram disputadas em altura tímbrica com os mais velhos já conhecedores de todo o reportório coral, por repetências acumuladas. Ninguém estranharia sequer as mudanças de vozes de alguns “Pavarotis”, do garnizé ao galináceo mais apurado, camuflados atrás do coro, que de boca aberta fingiam-se aos barítonos e baixos. Havia ainda quem as fizesse pela calada, em incursões aos bolsos dos calções, disputando uma e outra perisca, apanhada no passeio da rua e a ser fumada na retrete da escola, no intervalo seguinte. Se a dita cuja não chegava para todos, dividia-se irmãmente o prazer e assim enquanto os mais velhos fumavam o “charros”, os demais iam treinando nos cigarros de barba de milho!