CANTINHO DOS LOBOS DO MAR
Uma “gaivota “ quase fisgada…
Carlos Barros
O
relógio da torre da Igreja matriz marcava
a partida das motoras para o mar: três horas da manhã.
Na travessa dos pescadores, está o acostumado alvoroço
nas casas, com os preparativos para a
faina da pesca, mulheres arranjando a “marmita”- Baú- do almoço, com a
garrafinha da vinhaça dentro de uma saca de pano xadrez, feita pela costureira
Jandirinha, na sua novinha máquina de costura Oliva, de cor esverdeada, anunciando
esperança para uma boa pescaria.
O Saganito já vai à frente em direção ao cais,
onde a motora o espera, com a restante tripulação já a calcar a relva da
ribeira e a “enxotar” a orvalhada que se colava nas ervas e juncos.
Mais atrasado
o Luisinho - Luis André Eiras- com as suas galochas esverdeadas e o seu casacão
de xadrez, acelerava o passo na direção à motora Torrão da Berta Bichesa. O Zé
Pereira dos Passos, mais conhecido por
“Zé Tolo” já se encontrava dentro da motora esfregando os olhos “arremelados”, expulsando o sono que teimava atormentá-lo.
O Luisinho, que abandonou a escola aos oito
anos, era um pescador experimentado, tendo sido tripulante de várias motoras e
catraias -Santa Maria dos Anjos, catraia Senhora da Saúde, Rainha dos Anjos,
Claúdia Cristina, Senhora do Triunfo, 1º de Abril, Chiquinha e da motora Marco Filipe do senhor José Nibra. Começou a
andar ao mar aos onze anos, ainda uma criança, em que as exigências da vida, lhe tirou o direito de brincar, como a muitos
outros rapazinhos.
O mestre Luisinho, completou cinquenta e cinco
anos de árduo trabalho no mar, sempre com a barra a ameaçar tragédia…
O Luisinho pescador arguto e corajoso, na
motora Torrão, ia sempre na casa do leme
e era homem de confiança de toda a tripulação. Já tinha vivido uma situação
trágica, num naufrágio com uma catraia- O Temerário-, à entrada da barra,
embarcação do Sebastião, pai do senhor Belemino Ribeiro. Nesse triste dia, o
Lázaro, o Bocage, foi engolido pelas mortíferas ondas do mar, morrendo afogado. Nesse mesmo dia, em terra,
o Café Copacabana, de um vilaverdende, foi devorado pelas chamas, apesar da
pronta e corajosa atuação dos Bombeiros
Voluntários de Esposende, comandados pelo João Conde Evangelista. Uma triste e
lamentável coincidência em que a tragédia e a tristeza estiveram de braços
dados…
O Torrão
partiu do paredão em direção ao mar, com a tripulação ocupada nos derradeiros arranjos das redes e linhas de pesca, com o Zé
dos Passos já arrebitado, tirando alguma água da motora, com o “vertedouro”. Chegados ao destino, toda a tripulação largou as redes, com o
Luisinho direcionando a proa da motora
para leste onde a “sonda rudimentar” indicava uns cardumes de peixes.
No regresso, depois de umas horas de trabalho
a largar as redes o Candinho, mais conhecido no seio da classe piscatória por “gaivota” andou sempre a “pegar” com o
Zé, fustigando-o com ameaças,
arreliando-o durante a viagem.
O
Luisinho, homem pacato e de “bons modos”
tinha avisado o Candinho para “acabar com aquilo”, avisando-o para deixar o “homem em paz”. O
Candinho, sempre irreverente continuou a
arreliar o “peguinha, voa a voa”, perante o desespero do Luisinho e
este, não está com “meias medidas”, pega no bicheiro para fisgar o Candinho
mas, este num gesto rápido e intuitivo, desviou-se e o fisgado foi o Zé no
ombro direito.
Ai que eu morro, gritava o Zé aflito com os
anzóis cravados na “grossa roupa” que o
protegia!...
O
Luisinho deixou o galheiro e tirou os
anzóis, enforcados no casacão do Zé que, por felicidade, não tinha sido
atingido no ombro contudo, continuava a gritar dizendo que estava “aleijado” e que queria ir “p´ró hospital!…
O Candinho,
colocou-se na proa do Torrão e nunca mais “abriu o bico” até chegar ao cais,
com receio que o Luisinho mandasse outra “bicheirada “, esta mais acertada…
O falecido
Ilhoca, na poupa, observando as gaivotas que seguiam a motora, ria-se “a perder”
perante o desesperado Zé que só olhava
para o ombro “gravemente” atingido…
“Ai que eu
morro, minha mãezinha acuda-me”, continuava o Zé a gritar, mirando o ombro.
O Zé continuou com a gritaria, protestando
contra o Luisinho e só se calou quando no cais, o Ilhoca lhe tirou a roupa e
viu que o ombro estava “sãozinho” como uma cereja…
Entretanto, a motora Torrão foi ancorada e presa pelos cabos no cais e o
Zé, com o baú na mão, lá se dirigiu para a rua de S. João onde o esperava a sua
mãe, a tia Adelaide já com o “caldo” na mesa e umas fanecas fritas a acompanhar
uns parcos grãos de arroz carolino, comprado na mercearia do Abílio Coutinho.
A noite invadiu
o bairro de S. João e todos os pescadores recolheram às suas camas, acomodados
aos “colchões de palha”, de vez em quando, acordados pelo despertar de algumas
pulgas que se preparavam para “almoçar”,
atacando e pele áspera e dura, dos nossos “heróis” pescadores que
raramente acordavam, tal era o cansaço de tanto trabalhar contra as intempestivas águas do mar.