quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Carlos Barros - Cantinho dos Lobos do Cávado



  As motoras/traineiras  de Esposende:

  Esposende, não há muito tempo, teve várias motoras e traineiras onde os pescadores exerciam a sua atividade piscatória e ganhavam o  “pão nosso de cada dia”, tendo que enfrentar, corajosamente, as   agruras do mar e as intempéries rigorosas, perante uma barra sempre traiçoeira e extremamente perigosa.


  “CANTINHO DO PESCADOR.”:

     “O beijo da vida…”

    Estava uma manhã serena, com uma névoa marítima a refrescar os corpos da tripulação da motora Filomena Antonieta, propriedade do Mestre João Careca – João Pinto Loureiro- e esta embarcação, depois de entrar  a “toda a carga” no mar, serpenteando-se  ao largo da restinga, lançou-se à pesca  de arrasto, do camarão,  ao longo da  costa.
   Estavamos em pleno Verão, onde o sol ainda “ressonava”…
   A tripulação da Filomena Antonieta, constituída pelos esposendenses Rodolfo “Ilhoca”-Rodolfo Eiras Afonso Neto-, que ia destemidamente ao leme, Tone Pirata, Chico-irmão do João Careca-, “Sai Sai” – Anselmo Saganito-, Augusto Sancho, Alfredo “Morrossol”, Milo-Emílio Lima- e o Mestre João Careca, pescador experiente e respeitável, velho “Lobo do Mar”, lançou as suas redes de arrasto, ao longo da costa, esperançosos numa boa pescaria de  camarão que, possivelmente, seria vendido à Teresa do Castelo, comerciante dinâmica e simpática mas, uma mulher de “armas”, uma “expert” a comercializar o marisco – lagosta, lavagantes, sapateiras, “caranguejas”,  camarão…-pescado nas águas marítimas, a poucas milhas da nossa orla marítima...
   A motora, em plena atividade piscatória, lá ia na sua atividade de arraso, com as “portinholas” beijando o fundo do mar,  “recebendo no seu “regaço” o marisco e eis que o sempre brincalhão Milo,  ilusionista “de profissão”, dirigiu-se ao “Ilhoca” e pergunta-lhe:
 - Vamos fazer uma aposta “Ilhoca”?
  O que é que queres,  já me vais lixar , “Calhalho”, disse gaguejando o “Ilhoca”….
  Olha,  vou  engolir  aquele linguado que está no convés !...
  Queres apostar  duas malgas no barrigana ou no Abílio Coutinho,  desafiou o Milo ao seu parceiro de barco.
  O “Ilhoca” curioso, colocou a boina para trás, ” arregaçou “ os olhos, deixou  o gigão que tinha nas mãos e disse-lhe:
 -“Nem és homem nem és nada”, se não fizeres isso, mas olha bem, as malgas de vinho não aposto porque tu só podes é beber pirolitos ou laranjada, respondeu, com o seu sotaque  o “Ilhoca”….
    O Milo pega no linguado, perante os olhares dos amigos e mete-o  pelo “garganil “ abaixo mas, desgraçadamente, o  peixe não deslizou e ficou encravado na garganta do aflito Milo.
    Aí que vou morrer, gritava o Milo, já a ficar negro, como  carvão…
    Vai buscar um anzol do congro, gritou o Chico ao Sancho e ao “Sai Sai” que estavam mais perto!
    O “Morrassol” e o Tone Pirata já rezavam ao Nosso Senhor dos Aflitos e à Nossa Senhora da Saúde  pela saúde do Milo, cada vez, de rosto mais branco como a cal.
    O Milo já estava  a “espernear”, com falta de ar” e, num  gesto  fulminante, o Chico  encostou a boca à do Milo, e com os  seus poderosos dentes, crava-os no rabo do linguado e retira-o da boca do desesperado e amarelado Milo que ficou com a boca ensanguentada porque os seus lábios  ou ”beiças”, como dizia o  Sancho,  foram lixados pela  rugosa pele do  linguado areeiro.
   Após breves minutos, já restabelecido, o Milo abraçou-se ao Chico e, com voz trémula, disse-lhe:
- Irmão, salvaste-me a pele e já estava no “outro mundo” se não fosses tu, meu irmãozinho!...
  O Chico e o seu irmão João Careca,  que  assistiu muito aflito ao “salvamento” do Milo, ficaram descansados ao ver o Milo a respirar e aos “pinotes” de contentamento.
  Maria Antonieta, depois de recolher as redes  com uma boa pescaria, regressou ao cais Norte de Esposende, atracando nas calmas águas do Cávado, onde algumas peixeiras e a Teresa do Castelo, impondo a sua compleição física e empurrando-as para o lado,   esperavam pelo pescado.
  Comprada toda a “mariscada”, a Teresa dirijia-se à loja do Coutinho, onde o Carlinhos da Jandira, pesava todo o marisco, inclusive, grandes lavagantes e lagostas na balança de pratos que reluziam, depois de serem lavados, com areia e limão, pela Glorinha e pelo Carlinhos, nas horas vagas.
     Como  recompensa, a Teresa oferecia um pequeno lavagante ao Carlinhos que a sua Tia Alice cozia numa panela, sendo logo ingerido, acompanhado com um bom traçado-vinho com gasosa- e um sumol que o Carlinhos bebia, deixando, um “fundinho” no copo para saborear com o caldo de feijão com  “troços”.
     A Maria Antonieta, comprada pelo sr. João Careca por quarenta contos, (e com anzóis ,como afirmou…) a um guarda-fios, que se tinha tornado pescador, acostou ao longo do paredão, sendo segura pelas fortes “amarras” às argolas, junto às escadinhas, onde “se curavam” os tremoços da M. Amália-famosa tremoceira- e da Tia Aninhas.
   Toda a tripulação, depois de lavar todo o convés do barco e do porão, veio para terra, para descansar por umas horas,  todavia foram “assinar o ponto”, comandados pelo Tone Pirata, Ilhoca e “Morrassol”, ao Barrigana, outros porém, dirigiram-se à Lucas e ao Coutinho, para  provarem o saboroso vinho do Tio Firmino de Vila Cova, que deixava marca nas malgas. Era um tintol de luxo, como dizia o Tio Rogério e o Geno nas suas conversas na tasca/armazém do Coutinho, sentados nos sacos de feijão e de milho …
   O Pezinho, cliente assíduo, do Coutinho, bebia uns “penaltis” valentes e a garganta nunca secava…
   O José da Lucas, um “bebedor” sapiente e moderado, uma malguinha, no máximo duas, dava-lhe para toda a tarde, e o aperitivo era falar e defender o Benfica, acolitados pelo Rogério que só falava do Coluna que para ele, era  o melhor jogador do Benfica, dizia-me ele nas suas   “vivas conversas”.

   Nesses tempos,  os pescadores de Esposende no inverno, raramente iam ao mar, que estava quase sempre “virado ou picado” e conviviam, naturalmente, nas Tascas, onde passavam as tardes, conversando e discutindo as suas histórias, as suas ricas vivências, um património histórico/cultural que  deveremos preservar, registando-as e divulgando-as.

Carlos Manuel de Lima Barros

Nota:
Esta história é verídica e foi-me contada e recontada pelo Emílio Lima- Milo-,  Francisco  Loureiro- -Chico-, João Pinto Loureiro- João Careca- e teve como palco, a motora Filomena  Antonieta, no longínquo ano de 1967.