Os
porcos rabichos
Estávamos numa sexta-feira, numa manhã
cinzenta, nos inícios dos anos sessenta, com o nevoeiro a embaciar a bela
paisagem do nosso Cávado, onde os barcos e as motoras desapareciam
misteriosamente, dos nossos horizontes visuais, tal era o denso nevoeiro que se
fazia sentir.
As gaivotas pairavam no ar,
pronunciando bom repasto esperando pelas tripas-entranhas- lavadas pelas
mulheres do matadouro, junto aos “terrões” do rio..
O portão do matadouro foi aberto pelo,
funcionário camarário, Zé da Vila, muito cedinho e apenas o Valdemar estava
encostado ao muro, com uma corpulenta vaca que olhava impavidamente para aquele
sinistro local, mal ela sabia o destino que iria ter… O senhor Miranda-
“Pastor”-, na companhia do Zé Fidó, estava a chegar com uma toura e um boi muito
cornudo com uma longa barbela.
Pelas oito horas da manhã, começou a entrar o
gado para o abate e uma carrinha Bedford de caixa aberta, transportava alguns
porcos mal cheirosos e muito ruidosos, grunhindo, quase que adivinhando o seu
fim…. O Calisto de Curvos estava a chegar com a sua bicicleta, fazendo grande
“chiadeira”, com um cesto atrás, para transporte das encomendas e alguma carne.
O Zé Fidó chegava a ir a pé, a Viana do
Castelo, Marinhas, Palmeira de Faro, Alvarães, Curvos, Vila Cova e outras
freguesias transportando gado para o matadouro, percorrendo dezenas de
quilómetros, durante muitas horas, para chegar às oito horas em ponto ao
Matadouro Municipal de Esposende.
Com o matadouro em “rebuliço”, durante a
manhã, o gado foi sendo paulatinamente abatido pelas “choupas” do Jaime da
Faustina, Álvaro Filomeno e filho, pelo Zé do Talho (Teresinhas), sangrado e de
imediato esquartejado, com o Valdemar a desfazer as vacas para o Talho Catora e
algumas ovelhas que, com o seu ar “angelical”, foram sendo abatidas, numa ténue luta pela vida…
Os
veterinários dr. Gonçalves de Vila do Conde e, mais tarde, o dr. Moreira de
Barcelos faziam a inspecção sanitária aos animais abatidos, os quais levavam um
longo carimbo, em toda a carne, como garante do controlo sanitário do gado. O
senhor Marquês era um dos responsáveis sanitários do matadouro e estava sempre
vigilante embora, fizesse “vista grossa” a algumas situações…
O Carlinhos da Jandira estava quase sempre
presente às sextas-feiras ou segundas-feiras, e sob a cumplicidade e apoio do
Zé da Vila, entrava no matadouro para segurar nas pernas dos bovinos,
facilitando o trabalho do Valdemar e do Jaime ou mesmo do Zé Fidó, já que o seu
desejo era receber a bexiga do animal para, depois de seca, ser utilizada de
“cambra de ar” nas bolas de capão do Zé Pancas que possuía várias já que era o
“rei dos papeizinhos-cromos- e das senhas da bola que era a garantia da bola de
couro.
Os
porcos, presos num longo e negro banco, eram mortos depois do gado, queimados
com colmo, esfregados com pedras pomes e
lavados com água quente e sabão rosa e
posteriormente desfeitos pelos talhantes: Zé Fidó, Jaime…
Aos
longos dos anos, as mulheres - Ângela do Corcunda, Quinhas da Vindeirinha (mãe
do Quim Tripas), R. Mujica, Maria Picá-
mulher do Russo-, Laura Ministra, Carma Ceareiro, Celina do Cocho) lavavam as
tripas, -para as chouriças, “solas”,…- no rio
que depois eram cozidas em panelões na cozinha do matadouro com o sangue dos animais e levavam um pequeno “quinhão” para casa…
João Louceiro com a sua carroça, auxiliado
pelo Zé da Vila, Marquês e Artur Pessegueiro, recolhia e distribuía a carne do
Matadouro pelos talhos de Esposende, poupando
combustível uma vez que a égua estava
sempre em boa forma física. Não precisavam da “Galp” apenas de uns fardos e
palha e água para pôr a “viatura” a rolar…
A Páscoa, o mês de Agosto e o Carnaval, eram os períodos de maior actividade do
matadouro onde o consumo da carne era maior.
O Quim
Tripas sempre rondou o Matadouro para as suas aventuras e muitas pessoas estranhavam a presença deste
ousado esposendense por estas paragens e a afunga-fisga- andava sempre ao
pescoço, com os bolsos cheios de godos , as “balas” desse tempo…
Durante muito tempo, os porcos mortos e já
preparados apareciam sem rabo e o sangue desaparecia dos alguidares e este mistério
permaneceu durante muito tempo.
Interrogava-se o Álvaro do Talho:
- Como é possível os meus
porcos aparecerem no meu Talho sem rabo?
O Jaime e o sr. Alfredo
queixavam-se do mesmo mantendo-se preocupados já que muitos clientes compravam este saboroso apêndice, todas as
semanas.
O Valdemar, gaguejando, disse ao Catora que
desconfiava do Quim Tripas que não largava o matadouro…
Vou ver se saio mais cedo daqui, para levar o
meu Matateu (tourinho domesticado e amansado pelo Valdemar) ao pasto no campo do Pirolau, avisava o
Valdemar acelerando o seu trabalho.
O Zé Manel Catora afirmava que o Quim Tripas só
vinha ao matadouro para nadar e dar uns mergulhos no “carreiro do rio” e para
apanhar umas solhas ao pé, para levar para casa.
O Zé
da Vila que estava a ouvir a conversa, junto ao Carlinhos, com o Tone Duarte na
espreita, olhou para o sr. Álvaro do Talho e numa resposta rápida, avançou com
uma idéia:
Na
próxima vez, vou fazer uma emboscada e apanho o vadio que corta os rabos dos
chicos…
Por
volta das treze horas da tarde, o Zé da Vila, estava escondido por detrás da
porta do matadouro, lado poente e com o gado todo abatido esperou, esperou até
que….
Rastejando, pelo poente, apareceu o Quim
Tripas, de calções de ganga, já muito “roçados” com uma faca enferrujada e
pouco afiada, na mão, aproximou-se do
banco onde estava o porco e cortou o rabo, que ainda fumegava, pela “raíz” e lançou-se em grande correria só parando na
junqueira… O Zé da Vila, presenciando, esta situação e impotente em acompanhar
a vertiginosa correria do Quim Tripas, entrou no matadouro, onde os seus amigos marchantes estavam a “mudar de roupa”
e a lavarem as mãos e desabafou:
- Já sei quem é o “gandulo” que
tem cortado os rabos aos nossos porcos!...
Quem é, quem é, perguntaram em uníssono, os
talhantes presentes….
É o Quim Tripas que nos tem
“roubado” os rabos e até deixou cair um copo plástico que era para levar o
sangue para beber mas, não teve tempo!
Meu
Deus, só poderia ser o Quim Tripas, mas é melhor fazer isto que partir os
vidros todos do nosso matadouro como já tinha feito há uns tempos, concluiu o
Zé do Alfredo perante o olhar impávido do senhor Jaime e do Júlio que tinham chegado ao matadouro naquele momento.
O cão “faine” (“fine”, em inglês) um “boxer”
obediente e bem domesticado pelo dono, estava impávido, junto ao seu dono, senhor
Jaime, com uma faca segura nos dentes para a entregar. O “faine” fazia muitos
recados e era dotado de muito expediente e fugia da “vadiagem”….
O Quim
Tripas cozinhava os rabos e, muitas vezes, comia-os crus e a acompanhar, bebia um copo de sangue que lhe sabia pela vida… Mas
não era o único que bebia ou comia sangue –cozido- já que muitas
crianças da ribeira também o faziam porque “fazia bem” à saúde… Era uma
“receita” da época” onde a medicina
apresentava muitas insuficiências e não estava evoluída como nos tempos
de hoje.
Naturalmente, que o Quim Tripas não
regressou, tantas vezes, ao matadouro, para o assalto aos rabos dos chicos mas,
longe em longe, perante a distracção dos talhantes, os porcos ficavam novamente, sem rabos e eles diziam:
O Quim Tripas passou por aqui, mas já
estamos habituados, afirmavam, conformados, os talhantes perante estas
incursões do incorrigível Quim Tripas. Era uma criança ousada, destemida,
aventureira, esperta e pugnava apenas, pela sobrevivência através de diversos expedientes e, nesses tempos, os estômagos de muitas
crianças, “davam“ horas a todo o momento porque o alimento não abundava nos seus lares.
O
Matadouro de Esposende, mais tarde, acabou, por encerrar, nos meados dos anos
sessenta e o Quim Tripas adiou as suas traquinices contudo, outras aventuras apareceram que agitaram e
despertaram o mundo das “crianças da nossa ribeira” que sempre
viveram alegres, livres, felizes e confiantes na sobrevivência.
Esposende 6 agosto de 2014
"Cantinho dos lobos do Mar”