REPUBLICAÇÃO
“Vamos às
solhas!...”.
A primavera batera
“às portas” da vila de Esposende e, numa
pujante manhã, a vida começava a
despertar para a faina diária e a “criançada” saltou da cama, atraída pela
manhã primaveril que a natureza presenteava, como sempre, os esposendenses.
Numa casinha
simples, térrea e acolhedora, a norte de
Esposende, perto da igreja matriz, junto ao lavadouro público, a Rosa peixeira já estava a pé e os filhos-
Carlos, Tone…- já se encontravam bem
acordados, pelo “despertador matinal” que era o chilrear dos tordos e da outra
passarada que se tinha instalado, com a sua orquestra, nas palmeiras da casa
dos padres.
Vamos rapazes, todos para o tanque lavar a cara e
está um belo dia para ir às solhas, disse a tia Rosa, já prontinha para recolher os chicharros e vendê-los, no
cantinho das sete moléstias.
Num ápice o
“exército” foi organizado com o Carlos
Bicho, como “general” das tropas, com os seus “soldados,” Tonho, Tone Bichesa e o Miguéis,” O Azar” e, todos eles, pegaram nas redes das solhas (redes do bucho), que estavam
no corredor da entrada, foram para a
zona do Hotel Suave-Mar, fazer os “lanços” iniciais.
Quando ia o João Calhandra, o Carlos Bicho perdia o “posto” e quem comandava as”
tropas” era o sr. João, pessoa muito afável e respeitadora.
Estes
jovens pescadores, sem apoio do barco, percorriam o rio todo lés-a-lés, até à ponte de Fão e nas lages,
perto desta ponte, nos torrões, as
solhas estavam acamadas, e a rede enchia-se
rapidamente, sendo guardadas num saco grande de linhagem, dado pelo Abílio
Coutinho, do seu armazém de cereais.
No rio, a azáfama começava a eclodir e uma vez a rede
esticada, começava-se, a bater no fundo
do areal, com as varas, para as solhas
irem ao encontro da rede que as aprisionava.
Estamos todos “partidinhos” queixava-se o
“Azar”, para os seus amigos, todo
molhadinho e já cansado de lutar contra a fria corrente do rio, já que a maré estava a
encher.
O Tonho, sempre
a resmungar, ameaçou que à tarde
não viria outra vez às solhas porque
tinha um jogo na ribeira contra o sul e logo “à croa”!...
O Carlos Bicho
deu um grito à rapaziada:
- “Caluda”, seus malandros vamos mas é trabalhar
porque a mãe já está com o caldo de farinha na mesa e nós aqui na moleza…
As solhas foram todas trazidas, de barco, da ponte de
Fão para casa, com os sacos recheados e quando a tia Rosa viu aquela pescaria desabafou:
-Meus filhinhos, que grande pescaria! Vocês merecem
um prémio, pois vou, amanhã, ao Marino
comprar-vos uma bola de futebol e um pião ao Abílio Coutinho !
O Tonho ao ouvir a mãe a falar de bola deu um salto e
foi contra o guarda-louça, que quase ia partindo,
uma malga, comprada na louceira.
As solhas foram espalhadas no chão e contaram-se setenta
dúzias que foram vendidas à Inocência da Pelada - mãe do Quico, João Careca, Zé
Fofó..-, a vinte e cinco tostões a
dúzia.
A tia Inocência ia a Barcelos e a Braga de
“caminheta” vender essas solhas e só
regressava a casa, na camioneta do Linhares, pela tardinha, com a
algibeira repleta de notas de vinte
escudos e algumas de cinquenta, sem contar com as muitas moedas que tilintavam ao ritmo largo da
passada da tia Inocência.
Nas redes chegavam-se a malhar sáveis e lampreias que
eram vendidas à tia Churra- Maria de Saúde Lemos- a cinco croas e esta peixeira
deslocava-se muitas vezes, a pé, ao Castelo, pela praia buscar o pescado na sua
gamela de madeira, para vender pelas
aldeias, chegando a ir a pé a Barcelos, onde as suas clientes a esperavam.
Estes “famosos pescadores” de solhas chegavam a levar
o João Café e o João Conde com eles para
o rio, e no final da pesca, também
levavam o seu “quinhão”.
Estes pescadores quando saíam do rio, estavam sempre
à espreita porque o Lázaro da Delegação
Marítima não perdoava a multa que era de cinco croas e quando eram
surpreendidos, fugiam e punham o peixe
fora ou escondiam-no no meio das silvas da ribeira. Quando não iam às solhas, estes corajosos
rapazinhos, iam apanhar guita para a pancada do mar que, na altura, dava bom
dinheiro: quarenta escudos, o quilo-.
Essa “guita”-tipo de algas marinhas- transportada
em carrelas, era seca, na ribeira e nos
campos, e vendida ao quilo para fabrico de produtos farmacêuticos e
plásticos.
O Romão Miquelino, sempre astuto e aventureiro, ia à
ribeira onde a guita estava a secar e “roubava” umas manadas para vender e
comprar cigarros que fumava às escondida dos pais e na Páscoa, este “mariola”
passeava de cigarro, geralmente provisórios ou definitivos, pelo paredão, longe
dos olhares dos amigos que o poderiam denunciar. Era o Romão , “no seu
melhor”!... Foi empregado da Nélia e
chegava a deslocar-se de “toiota”—carrinho de mão- ao Ofir, levar grades
de cervejas, pirolitos e uns garrafões de vinho e, quando a sede apertava, em
pleno Verão, o Romão, à sucapa, com o dedo mindinho, empurrava o berlinde do pirolito para baixo,
e saia uma bufada de gás, e toca a esvaziar um pouco do líquido “alimonado”
pela “goela” abaixo.
Ingerido o pirolito, forças físicas eram revigoradas
e a viagem tornava-se mais rápida! Os “deuses” não o denunciava mas, que havia
reclamações pelos “defeitos” dos pirolitos, era um facto!...
Para além destes pescadores de rio, o tio Zé Pirata
era também um pescador de solhas experiente e não gostava nada ver no rio
aquela “cambada” que se fartava de
apanhar solhas…
Nesses tempos, o Álvaro Li, Zé Bebado, Tio Cálica e o
tio Alfredo Fá também dispunham de redes
de bucho para as solhas e faziam boas pescarias.
O nosso rio
Cávado sustentava famílias de pescadores
que pescavam algum pescado- solhas em abundância, mujos-erigos, barbos,
robalos, sáveis, enguias, “carangueijas” ,
lampreias…- com as corajosas
peixeiras – Tia Churra, Silvana, pai do
Pezinho, tia Graça, tia Antónia da
Galga- a deslocarem-se a pé às aldeias percorrendo vários quilómetros até Barcelos, para venderem o peixe. As contas
eram feitas com feijões, com processos matemáticos rudimentares mas, rigorosos
e o lucro era distribuído no fim das vendas, após salutares discussões e regateios…Essas
peixeiras eram “economistas”
rigorosas que deviam fazer inveja aos nossos políticos, dos
tempos atuais…
À tarde, o sol convidava a uns mergulhos nas
escadinhas e o Tonho, Carlos Bicho, Azar e Tone Bichesa, de
cuecas , lançavam-se em voo picado para
as águas serenas e amenas do Cávado. Os
“calções de banho” improvisados, eram secos ao sol, sobre as silvas e varais e,
posteriormente, os nossos amigos iam
para casa em grande correria, “comer o
jantar”, uns chicharros fritos com batatas cozidas, molhadas com pouco azeite,
comprado na mercearia do Coutinho ou na Lucas e umas côdeas de pão de milho.
As lavadeiras,
recolhiam a roupa que estava a
corar sobre a erva e os arames improvisados e
regressavam às suas casas, muito
apressadas porque os filhos esperavam pelo “caldo” e algum “prezigo” milagroso…
Quando os tordos e os “Charréus”, pela tardinha,
começavam a chilrear nas palmeiras da
Casa dos Padres, era sinal para todos
irem para a cama, onde dormiam todos juntos,
armazenando novas energias, para
as acostumadas pescarias às
solhas para o dia seguinte.
Chegava o silêncio da noite , a Igreja Matriz
silenciava os sinos, o sacristão ” Biomiro”,
alfaiate de profissão, apagava as velas dos altares, fechava as portas da
igreja e regressava à sua casa para o justo descanso.
Uma lavandisca perdida na rua, levantava voo para
destino incerto, fugindo ao ar frio que começava a atormentar a noite.
Entrevistado:
Manuel Carlos Vilas Boas Cardoso
Dia 12 de março de
2013
Peixaria Rosa-
10.30 horas
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