Professor Doutor Eugénio Campos Ferreira
Permitam-me
começar por expressar a minha gratidão pelo convite para participar nesta
apresentação pública do livro O Passado Revisitado. Recebi este
convite com sincero apreço, não apenas pelo respeito que nutro pelo autor e
pela sua obra, mas também pela ligação profunda que ambos temos a esta terra.
Falar sobre um conterrâneo ilustre, aqui no Fórum Municipal Rodrigues Sampaio,
é para mim um privilégio que assumo com sentido de responsabilidade.
Como muitos sabem, não sou propriamente um homem de letras. Venho das ciências, da engenharia e da investigação, domínios onde a precisão e o método são ferramentas essenciais. Talvez por isso, sempre que encontro quem domine com tal naturalidade o território exigente da erudição humanista, sinto um misto de admiração e humildade. O Dr. Francisco Marques é um desses raros exemplos. Um colecionador criterioso, um leitor incansável e um intérprete atento do que a tradição escrita nos legou.
A
cada novo livro, Francisco Marques demonstra que a sua biblioteca é muito mais
do que um acervo privado. É um laboratório cultural. É um lugar onde a leitura
se transforma em conhecimento e onde o conhecimento se converte em serviço
público. Como observou José Carlos Seabra Pereira no prefácio de Fernão de
Magalhães, Cidadão do Porto, o autor não guarda os seus tesouros para
usufruto silencioso. Partilha-os, ilumina-os, contextualiza-os e oferece-nos,
através da escrita, aquilo que descobriu, estudou e compreendeu.
O
Passado Revisitado inscreve-se nessa mesma linha. É um
livro que nasce da materialidade dos códices, dos incunábulos e das edições
raras, mas que se projeta muito para além deles. Cada capítulo parte de um
livro concreto, mas desemboca numa reflexão mais ampla sobre a história
portuguesa, sobre o humanismo europeu e sobre a circulação das ideias entre
civilizações.
Permitam-me
sublinhar como esta obra dialoga com a grande tradição humanista portuguesa.
Não falo apenas dos grandes nomes que o autor convoca, de Jerónimo Osório a
António de Gouveia, de Sá de Miranda a Damião de Góis, de Garcia d’Orta a Amato
Lusitano, de António de Sousa Macedo ao Doutor António Ferreira. Falo também de
uma atitude intelectual que está profundamente enraizada na nossa história. A
atitude de quem lê para compreender, de quem estuda para interrogar o mundo e
de quem procura nas fontes antigas o sentido do presente.
É
essa tradição que encontramos nos humanistas quinhentistas que ousaram comparar
o Evangelho com a filosofia estóica, que cruzaram Aristóteles com Avicena, que
estudaram os tratados médicos hebraicos e árabes, que dialogaram com Erasmo,
com Budé e com o Renascimento italiano. Portugal foi, durante séculos, um país
onde as ideias circulavam com grande vitalidade e onde a ciência, o direito, a
teologia e a literatura se entrelaçavam num mesmo impulso de curiosidade. Ler O
Passado Revisitado é reencontrar esse impulso.
Ao
longo do livro, o autor convoca figuras que marcaram a construção da cultura
portuguesa e europeia. O leitor reencontra Damião de Góis, cuja
independência de espírito continua a ser um exemplo notável de integridade
intelectual. Permitam-me deter-me um instante em Damião de Góis, figura maior
do humanismo europeu e exemplo de independência intelectual num tempo de
vigilância intensa. A sua vida e obra têm sido recentemente revisitadas pela
historiografia internacional, e recordo em particular o livro de Edward
Wilson-Lee (Prof de Literatura Medieval na Univ de Cambridge), “A Torre dos
Segredos”, que coloca em diálogo os mundos paralelos de Camões e de Góis. A
obra mostra como estes dois autores imaginaram visões distintas, e no entanto
complementares, da história global no século XVI. Esta nova leitura reforça a
atualidade de Góis e sublinha a pertinência da sua presença no livro de
Francisco Marques.
Reencontra
Garcia d’Orta e Amato Lusitano, pioneiros de uma medicina baseada em observação
e experiência, que cruzaram saberes orientais e ocidentais. Reencontra o
pensamento jurídico de António Ferreira e de António de Sousa Macedo.
Reencontra o diálogo fecundo entre o humanismo cristão e a ciência grega, entre
o direito romano e as novas realidades políticas da modernidade.
E,
porque falamos de um livro enraizado nas fontes clássicas, reencontramos também
as figuras que moldaram o imaginário europeu. Cícero, cuja defesa da razão e da
república permanece inspiradora. Avicena, cuja síntese de medicina e metafísica
marcou todo o pensamento medieval. Luciano de Samósata, com a sua ironia e
olhar agudo sobre os vícios humanos.
Estes
autores surgem não como citações decorativas, mas como interlocutores vivos na
reflexão que o Dr. Francisco Marques propõe.
Permitam-me
salientar um aspeto que considero de grande significado pessoal. No primeiro
capítulo, dedicado a Esposende, o autor faz mais do que uma evocação
sentimental. Reconstrói parte da nossa memória coletiva. Mostra-nos que esta
terra, tantas vezes pensada apenas na relação com o mar, tem também um
património intelectual que merece ser conhecido e valorizado. Ao recuperar
figuras como Frey Francisco de Esposende e ao revisitar a história cultural da
região, Francisco Marques contribui para que Esposende se veja a si própria
como lugar de cultura, de leitura e de reflexão.
Este
é, para mim, um ponto muito importante. A identidade de uma comunidade
constrói-se através da memória. E a memória é alimentada por quem lê, por quem
estuda, por quem escreve. Por isso, obras como O Passado Revisitado são
tão valiosas. Trazem para o presente aquilo que o tempo dispersou. Reexplicam o
que o esquecimento ameaça. E fazem-no com rigor, com elegância e, sobretudo,
com generosidade.
Ao
percorrer os capítulos do livro, impressiona-me também a forma como o autor
aproxima tempos distantes sem cair em anacronismos. A reflexão sobre a
historicidade de Cristo, a leitura das Ordenações Manuelinas, a evocação de D.
Sebastião ou a análise das pandemias na Antiguidade são exemplos de como se
pode revisitar o passado com lucidez e equilíbrio, evitando simplificações e
preconceitos.
Se
tivesse de caracterizar esta obra em poucas palavras, diria que é um exercício
de mediação. Mediação entre o livro raro e o leitor comum. Mediação entre a
erudição e a acessibilidade. Mediação entre o rigor histórico e o prazer da
leitura. E, talvez mais importante, mediação entre o passado e o presente.
É
por isso que, mesmo vindo do mundo da ciência e da tecnologia, encontro nesta
obra um enorme valor. A ciência constrói-se sobre dados, sobre experiências,
sobre modelos. A cultura constrói-se sobre textos, sobre imagens, sobre
memória. Ambas procuram compreender o mundo e ambas dependem da transmissão do
conhecimento. No fundo, ambas se alimentam da mesma atitude de curiosidade e de
respeito pelo que os antecessores nos legaram.
Quero,
por isso, deixar uma palavra de viva felicitação ao Dr. Francisco Marques. Não
apenas por este livro, que é mais um contributo notável, mas pelo percurso que
tem construído. A coleção Alguns Livros da Minha Biblioteca e Outras
Histórias já constitui, por si só, um serviço à cultura portuguesa. O
Passado Revisitado reforça esse serviço e amplia-o.
Agradeço novamente a oportunidade de participar nesta sessão. É para mim uma alegria celebrar este livro, esta obra e esta amizade, aqui na nossa terra. Que muitos leitores possam encontrar nestas páginas a mesma riqueza intelectual e o mesmo prazer de descoberta que encontrei.
Esposende, 29 de novembro
de 2025
