segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Apresentação do livro “O Passado Revisitado” de Francisco Marques

 Professor Doutor Eugénio Campos Ferreira


Permitam-me começar por expressar a minha gratidão pelo convite para participar nesta apresentação pública do livro O Passado Revisitado. Recebi este convite com sincero apreço, não apenas pelo respeito que nutro pelo autor e pela sua obra, mas também pela ligação profunda que ambos temos a esta terra. Falar sobre um conterrâneo ilustre, aqui no Fórum Municipal Rodrigues Sampaio, é para mim um privilégio que assumo com sentido de responsabilidade.

Como muitos sabem, não sou propriamente um homem de letras. Venho das ciências, da engenharia e da investigação, domínios onde a precisão e o método são ferramentas essenciais. Talvez por isso, sempre que encontro quem domine com tal naturalidade o território exigente da erudição humanista, sinto um misto de admiração e humildade. O Dr. Francisco Marques é um desses raros exemplos. Um colecionador criterioso, um leitor incansável e um intérprete atento do que a tradição escrita nos legou.

A cada novo livro, Francisco Marques demonstra que a sua biblioteca é muito mais do que um acervo privado. É um laboratório cultural. É um lugar onde a leitura se transforma em conhecimento e onde o conhecimento se converte em serviço público. Como observou José Carlos Seabra Pereira no prefácio de Fernão de Magalhães, Cidadão do Porto, o autor não guarda os seus tesouros para usufruto silencioso. Partilha-os, ilumina-os, contextualiza-os e oferece-nos, através da escrita, aquilo que descobriu, estudou e compreendeu.

O Passado Revisitado inscreve-se nessa mesma linha. É um livro que nasce da materialidade dos códices, dos incunábulos e das edições raras, mas que se projeta muito para além deles. Cada capítulo parte de um livro concreto, mas desemboca numa reflexão mais ampla sobre a história portuguesa, sobre o humanismo europeu e sobre a circulação das ideias entre civilizações.

Permitam-me sublinhar como esta obra dialoga com a grande tradição humanista portuguesa. Não falo apenas dos grandes nomes que o autor convoca, de Jerónimo Osório a António de Gouveia, de Sá de Miranda a Damião de Góis, de Garcia d’Orta a Amato Lusitano, de António de Sousa Macedo ao Doutor António Ferreira. Falo também de uma atitude intelectual que está profundamente enraizada na nossa história. A atitude de quem lê para compreender, de quem estuda para interrogar o mundo e de quem procura nas fontes antigas o sentido do presente.

É essa tradição que encontramos nos humanistas quinhentistas que ousaram comparar o Evangelho com a filosofia estóica, que cruzaram Aristóteles com Avicena, que estudaram os tratados médicos hebraicos e árabes, que dialogaram com Erasmo, com Budé e com o Renascimento italiano. Portugal foi, durante séculos, um país onde as ideias circulavam com grande vitalidade e onde a ciência, o direito, a teologia e a literatura se entrelaçavam num mesmo impulso de curiosidade. Ler O Passado Revisitado é reencontrar esse impulso.

Ao longo do livro, o autor convoca figuras que marcaram a construção da cultura portuguesa e europeia. O leitor reencontra Damião de Góis, cuja independência de espírito continua a ser um exemplo notável de integridade intelectual. Permitam-me deter-me um instante em Damião de Góis, figura maior do humanismo europeu e exemplo de independência intelectual num tempo de vigilância intensa. A sua vida e obra têm sido recentemente revisitadas pela historiografia internacional, e recordo em particular o livro de Edward Wilson-Lee (Prof de Literatura Medieval na Univ de Cambridge), “A Torre dos Segredos”, que coloca em diálogo os mundos paralelos de Camões e de Góis. A obra mostra como estes dois autores imaginaram visões distintas, e no entanto complementares, da história global no século XVI. Esta nova leitura reforça a atualidade de Góis e sublinha a pertinência da sua presença no livro de Francisco Marques.

Reencontra Garcia d’Orta e Amato Lusitano, pioneiros de uma medicina baseada em observação e experiência, que cruzaram saberes orientais e ocidentais. Reencontra o pensamento jurídico de António Ferreira e de António de Sousa Macedo. Reencontra o diálogo fecundo entre o humanismo cristão e a ciência grega, entre o direito romano e as novas realidades políticas da modernidade.

E, porque falamos de um livro enraizado nas fontes clássicas, reencontramos também as figuras que moldaram o imaginário europeu. Cícero, cuja defesa da razão e da república permanece inspiradora. Avicena, cuja síntese de medicina e metafísica marcou todo o pensamento medieval. Luciano de Samósata, com a sua ironia e olhar agudo sobre os vícios humanos.

Estes autores surgem não como citações decorativas, mas como interlocutores vivos na reflexão que o Dr. Francisco Marques propõe.

Permitam-me salientar um aspeto que considero de grande significado pessoal. No primeiro capítulo, dedicado a Esposende, o autor faz mais do que uma evocação sentimental. Reconstrói parte da nossa memória coletiva. Mostra-nos que esta terra, tantas vezes pensada apenas na relação com o mar, tem também um património intelectual que merece ser conhecido e valorizado. Ao recuperar figuras como Frey Francisco de Esposende e ao revisitar a história cultural da região, Francisco Marques contribui para que Esposende se veja a si própria como lugar de cultura, de leitura e de reflexão.

Este é, para mim, um ponto muito importante. A identidade de uma comunidade constrói-se através da memória. E a memória é alimentada por quem lê, por quem estuda, por quem escreve. Por isso, obras como O Passado Revisitado são tão valiosas. Trazem para o presente aquilo que o tempo dispersou. Reexplicam o que o esquecimento ameaça. E fazem-no com rigor, com elegância e, sobretudo, com generosidade.

Ao percorrer os capítulos do livro, impressiona-me também a forma como o autor aproxima tempos distantes sem cair em anacronismos. A reflexão sobre a historicidade de Cristo, a leitura das Ordenações Manuelinas, a evocação de D. Sebastião ou a análise das pandemias na Antiguidade são exemplos de como se pode revisitar o passado com lucidez e equilíbrio, evitando simplificações e preconceitos.

Se tivesse de caracterizar esta obra em poucas palavras, diria que é um exercício de mediação. Mediação entre o livro raro e o leitor comum. Mediação entre a erudição e a acessibilidade. Mediação entre o rigor histórico e o prazer da leitura. E, talvez mais importante, mediação entre o passado e o presente.

É por isso que, mesmo vindo do mundo da ciência e da tecnologia, encontro nesta obra um enorme valor. A ciência constrói-se sobre dados, sobre experiências, sobre modelos. A cultura constrói-se sobre textos, sobre imagens, sobre memória. Ambas procuram compreender o mundo e ambas dependem da transmissão do conhecimento. No fundo, ambas se alimentam da mesma atitude de curiosidade e de respeito pelo que os antecessores nos legaram.

Quero, por isso, deixar uma palavra de viva felicitação ao Dr. Francisco Marques. Não apenas por este livro, que é mais um contributo notável, mas pelo percurso que tem construído. A coleção Alguns Livros da Minha Biblioteca e Outras Histórias já constitui, por si só, um serviço à cultura portuguesa. O Passado Revisitado reforça esse serviço e amplia-o.

Agradeço novamente a oportunidade de participar nesta sessão. É para mim uma alegria celebrar este livro, esta obra e esta amizade, aqui na nossa terra. Que muitos leitores possam encontrar nestas páginas a mesma riqueza intelectual e o mesmo prazer de descoberta que encontrei.

Esposende, 29 de novembro de 2025