No cais norte, muitas peixeiras esperavam
pelos “lobos do mar” e, enquanto que estes não chegavam, seguiam-se gritarias, balbúrdias, confusões,
algazarras e discussões sobre a venda e o lucro do peixe vendido no dia anterior.
A tia
Silvana, tia Criolice, tia Genoveva,
Inocência, tia Antónia, tia Carolina, Antónia da Galga, tia Ondina, tia
Torcata, tia Maria Grande, tia Graça, Amélia Pichela do
Curico, tia Cila, entre muitas outras
“tias”, estavam todas presentes no cais, sob o olhar desconfiado do guarda-fiscal, prontas a comprar o peixe, arrematado pelos
pescadores das catraias e afinavam a grossa voz. Pareciam “rouxinóis” enrouquecidos…
Ao
longe, entrando na barra em direção ao “dorso do Cávado”, com a sua “pele”
luzidia e azulada de um tom celeste, as
catraias iam chegando, uma a uma, com a
corpulenta Cornuda à frente, perante a
alegria das peixeiras que auguravam, pelo seu semblante, abundância de peixe, especialmente de raias,
peixes-sapos, feiticeiras e muita
faneca.
Com remadas fortes e ritmadas, as
catraias acostaram ao cais, com as suas ancoras lançadas para o fundo do
rio, bem presas e começa o festival da descarga do peixe com os gigas cheinhas
a transbordar de pescado fresquinho,
raias a “esbracejar”, cações a
“resmungarem”, lavagantes e lagostas
“espreguiçando-se” nas cavernas das catraias, congros apelando à vingança, peixes-sapos moribundos fisgando o ”infinito”,
peixes-rosas com o seu ar angelical, cações
mordendo o ar, as fanecas
coitadas, já todas com a certidão de
óbito, assinadas pelos “moços” das catraias.
O
peixe lançado na rampa do cais, foi logo arrematado pelo Sampaio, tio Miguel e Muchacho e , passadas umas breves horas, foi
todo vendido e colocados nas gamelas das peixeiras para ser vendido em
Esposende e aldeias do concelho: Góios, Palmeira, Fão, Marinhas, S.Bartolomeu do Mar, Belinho e mesmo em
Forjães, após longas caminhadas de quilómetros infindos.
Estas mulheres corajosas iam a pé a
Barcelos, por vezes duas vezes: de manhã levavam sardinha e à tarde faneca e
saiam de madrugada de Esposende, às duas ou três horas da manhã, com o sol dormindo em sono profundo.
Nessa manhã, a última catraia a ser
limpa foi a do José dos Passos Pereira, apelidado por “Zé Tolo”, filho do saudoso Albano P. Laca e
da Tia Adelaide, e o Zé era peculiar pelo seu tipicismo e forma de estar na
vida. Era um fervoroso adepto do Sporting e do Esposende Sport Clube e, mais
tarde, da ADE, um sócio sempre com as
cotas em dia. Era um apaixonado e colecionador
de bandeiras e “galinetes” (galhardetes)..
Nessa
tarde, o Zé foi vigiar a catraia ao cais
norte e convidou o Toninho Rego-António Marques Rego- a acompanhá-lo numa curta
viagem pela ribeira, fintando os juncos e os varais com algumas raias e polvos a secarem sob
auspicioso sol que se fazia sentir.
Chegados ao cais norte, o Zé e o Toninho
entraram, por mera curiosidade, num
barco de recreio, com um reluzente motor
“Evinrude” , ancorado na rampa , e estenderam-se de barriga para o ar,
apanhando os raios solares, bronzeando-se com uma esfregadela de água doce, com
limo à mistura.
Com aquele solinho relaxante , os dois amigos adormeceram por
momentos, com a maré a descer-vazar-
e com a embarcação de recreio a
soltar-se das amarras, sem eles se aperceberem que o barco ia deslizando, em direção à barra.
Num ápice, já com a cabeça atormentada pelo
forte sol que se fazia sentir, estes amigalhaços acordaram da soneca e viram-se
perdidos, sem remos e muito menos leme ou vela !
Começaram a pedir por socorro e os gritos
espalharam-se pela marginal e a ribeira,
como sempre, estava ocupada com jogos de futebol norte-sul, mudando aos cinco e
acabando aos dez, com uma arbitragem sempre polémica porque nesses jogos tinha de haver zaragata, fazia
parte dos “regulamentos da ribeira”…Até
a maçaricada que estava a
bicar no lodo, levantou-se assustada!
O tio Laguna
do Salva-Vidas, tocou a sineta e os tripulantes do salva-vidas rapidamente chegaram, em longas correrias.
Já dentro do Salva-vidas “Vasco da Gama”, os
remadores, com fortes remadas, foram ao encontro do Toninho e do Zé, cuja
embarcação estava prestes a entrar no mar. O Tio Laguna saltou para
dentro do “barco dos aflitos”, amarrou o barco com uma corda ao
salva-vidas e trouxe-o a reboque até ao
cais norte.
Todos
chegaram salvos a terra e o Zé, “Peguinha, voa, a voa…” saiu
apressadamente do barco, e na rampa do cais, amarrou-o às argolas do paredão,
com o Toninho a reforçar os nós, não vá soltar-se novamente…
O dono da embarcação de recreio, banhista de
Braga, ficou enriquecido com este novo
“currículo” do seu barco: uma viagem alucinante, rumo ao desconhecido…
O Zé olhou para o Toninho, com os cabelos
“eriçados”, pelo pânico , disse-lhe:
-
Toninho, eu não tive culpa., o culpado
foi a maré que estava na vazante e pensava que estava na “cheiante”…
Não há problema , amigo “Zé”, eu não digo ao
teu pai Albano Laca pois, se ele soubesse , “dava-te cabo do corpo” e eu não
quero que isso aconteça…
O Toninho Rego era um bairrista de “quatro
costados”, de convicções fortes, respeitador, crítico, dedicado e cumpridor e
era um excelente cozinheiro e doceiro.
No dia vinte e oito de janeiro, de mil novecentos e noventa e sete, o Toninho
“deixou-nos“ para sempre e Esposende ficou mais pobre com perda deste seu ente querido.
Esta aventura terminou num silêncio
comprometedor entre estes dois amigos e muitos outros esposendenses que
souberam desta insólita e surpreendente viagem ,que poderia redundar em
tragédia…
No dia
um de dezembro, José dos Passos
Pereira, morador na rua 5 de outubro, dias históricos- 5 de outubro e 1º de
dezembro- deixou de pertencer ao “elenco dos vivos”, deixando-nos saudades.
No
“lusito celestial”, estes esposendenses continuam a “navegar” nas águas serenas do Paraíso, abençoadas
pela ação divina, norteada pela agulha de marear dos arcanjos.
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