sábado, 2 de novembro de 2013

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR - O barco fugitivo, …

O barco fugitivo,

Por CARLOS BARROS



   No cais norte, muitas peixeiras esperavam pelos “lobos do mar” e, enquanto que estes não chegavam,  seguiam-se gritarias, balbúrdias, confusões, algazarras   e discussões sobre a venda e o lucro  do peixe vendido no dia anterior.
  A tia Silvana, tia Criolice, tia  Genoveva, Inocência, tia Antónia, tia Carolina, Antónia da Galga, tia Ondina, tia Torcata,  tia  Maria Grande, tia Graça, Amélia Pichela do Curico,  tia Cila, entre muitas outras “tias”, estavam todas presentes no cais, sob o olhar desconfiado do guarda-fiscal,  prontas a comprar o peixe, arrematado pelos pescadores das catraias e afinavam a grossa voz. Pareciam “rouxinóis”  enrouquecidos…
   Ao longe, entrando na barra em direção ao “dorso do Cávado”, com a sua “pele” luzidia e azulada de um tom celeste,  as catraias iam chegando, uma  a uma, com a corpulenta Cornuda à frente,  perante a alegria das peixeiras que auguravam, pelo seu semblante, abundância de peixe, especialmente de raias, peixes-sapos, feiticeiras  e muita faneca.
  Com remadas fortes e ritmadas, as catraias acostaram ao cais, com as suas ancoras lançadas para o fundo do rio, bem presas e começa o festival da descarga do peixe com os gigas cheinhas a transbordar de pescado fresquinho, raias a “esbracejar”,  cações a “resmungarem”,  lavagantes e lagostas “espreguiçando-se” nas cavernas das catraias, congros apelando à vingança, peixes-sapos moribundos fisgando o ”infinito”, peixes-rosas com o seu ar angelical, cações  mordendo o ar,  as fanecas coitadas,  já todas com a certidão de óbito, assinadas pelos “moços” das catraias.
    O peixe lançado na rampa do cais, foi logo arrematado pelo Sampaio, tio Miguel e  Muchacho e , passadas umas breves horas, foi todo vendido e colocados nas gamelas das peixeiras para ser vendido em Esposende e aldeias do concelho: Góios, Palmeira, Fão, Marinhas, S.Bartolomeu do Mar, Belinho e mesmo em Forjães, após  longas caminhadas de  quilómetros infindos.
   Estas mulheres corajosas iam a pé a Barcelos, por vezes duas vezes: de manhã levavam sardinha e à tarde faneca e saiam de madrugada de Esposende, às duas ou três horas da manhã, com o sol  dormindo em sono profundo.
  Nessa manhã, a última catraia a ser limpa  foi  a do José dos Passos Pereira, apelidado por  “Zé Tolo”, filho do saudoso Albano P. Laca e da Tia Adelaide, e o Zé era peculiar pelo seu tipicismo e forma de estar na vida. Era um fervoroso adepto do Sporting e do Esposende Sport Clube e, mais tarde, da ADE, um  sócio sempre com as cotas em dia. Era um apaixonado e colecionador  de bandeiras e “galinetes” (galhardetes)..
    Nessa tarde, o Zé  foi vigiar a catraia ao cais norte e convidou o Toninho Rego-António Marques Rego- a acompanhá-lo numa curta viagem pela ribeira, fintando os juncos e os varais com algumas raias  e polvos a secarem  sob  auspicioso sol que se fazia sentir.
  Chegados ao cais norte, o Zé e o Toninho entraram, por mera curiosidade,  num barco de recreio, com um reluzente motor  “Evinrude” , ancorado na rampa , e estenderam-se de barriga para o ar, apanhando os raios solares, bronzeando-se com uma esfregadela de água doce, com limo à mistura.
  Com aquele solinho  relaxante , os dois amigos adormeceram por momentos,   com a maré a  descer-vazar-  e com a embarcação de recreio  a soltar-se das  amarras, sem eles  se aperceberem que o barco  ia deslizando, em direção à barra.
   Num ápice, já com a cabeça atormentada pelo forte sol que se fazia sentir, estes amigalhaços acordaram da soneca e viram-se perdidos, sem  remos e muito menos  leme ou vela !
  Começaram a pedir por socorro e os gritos espalharam-se pela marginal  e a ribeira, como sempre, estava ocupada com jogos de futebol norte-sul, mudando aos cinco e acabando aos dez, com uma arbitragem sempre polémica porque  nesses jogos tinha de haver zaragata, fazia parte dos “regulamentos da ribeira”…Até  a  maçaricada que estava a bicar  no lodo,  levantou-se assustada!
 O tio Laguna do Salva-Vidas, tocou a sineta e os tripulantes do salva-vidas  rapidamente chegaram, em longas correrias.
  Já dentro do Salva-vidas “Vasco da Gama”, os remadores, com  fortes remadas, foram ao encontro do Toninho e do Zé, cuja embarcação estava prestes a entrar no mar. O Tio Laguna  saltou para  dentro do “barco dos aflitos”, amarrou o barco com uma corda ao salva-vidas  e trouxe-o a reboque até ao cais norte.
 Todos chegaram salvos a terra e o Zé, “Peguinha, voa, a voa…” saiu apressadamente do barco, e na rampa do cais, amarrou-o às argolas do paredão, com o Toninho a reforçar os nós, não vá   soltar-se novamente…
   O dono da embarcação de recreio, banhista de Braga,  ficou enriquecido com este novo “currículo”  do seu barco: uma viagem alucinante, rumo ao desconhecido
  O Zé olhou para o Toninho, com os cabelos “eriçados”, pelo pânico , disse-lhe:
- Toninho,  eu não tive culpa., o culpado foi a maré que estava na vazante e pensava que estava na “cheiante”…
 Não há problema , amigo “Zé”, eu não digo ao teu pai Albano Laca pois, se ele soubesse , “dava-te cabo do corpo” e eu não quero que isso aconteça…
 O Toninho Rego era um bairrista de “quatro costados”, de convicções fortes, respeitador, crítico, dedicado e cumpridor e era um excelente cozinheiro e doceiro.
 No dia vinte e oito de janeiro, de mil novecentos e noventa e sete, o Toninho “deixou-nos“ para sempre e Esposende ficou mais pobre com perda deste seu ente querido.
  Esta aventura terminou num silêncio comprometedor entre estes dois amigos e muitos outros esposendenses que souberam desta insólita e surpreendente viagem ,que poderia redundar em tragédia…
 No dia um de dezembro, José dos Passos Pereira, morador na rua 5 de outubro,  dias históricos- 5 de outubro e 1º de dezembro- deixou de pertencer ao “elenco dos vivos”, deixando-nos saudades.
  No “lusito celestial”, estes esposendenses continuam a “navegar” nas  águas serenas do Paraíso, abençoadas pela  ação divina,  norteada pela agulha de marear dos arcanjos.                                         

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