quinta-feira, 24 de junho de 2021

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR por Carlos Barros

Republicação  
“Tiro aos vidros” 

   Esposende despertou pela manhã,  com os sinos da Matriz a dar as sete horas matinais.
  Já em pleno julho, as crianças fora da escola, gozavam as suas  férias tão desejadas para se deleitarem na ribeira com os seus varais, a sua relva despenteada e os juncos abanando como que acenando à miudagem para os levarem até às pocinhas do rio para  se encherem de  lagostas para o repasto matinal.
   Na rua Conde de Agrolongo, o Quim Tripas-Joaquim Eiras Gonçalves- já afinava a afunga e enchia os bolsos de godos, apanhados nos areais da praia ou nos montes de areia das casas em construção.
   A Rua 31 de Janeiro, o João Papinhas-João Adriano-  fugia pela porta fora, à socapa da mãe porque tinha combinado um encontro com o Quim Tripas, no matadouro para estudarem mais uma das suas  aventuras: tiro aos vidros…

  Os dois comparsas, observaram as janelas do matadouro, sempre atentos ao Zé da Vila que guardava as instalações, e começaram os preparativos, recheando os bolsos de godos e  reforçaram a pelica das afungas, feitas, com paciência por estes dois rapazinhos irreverentes, com as borrachas de “cambras de ar” dadas pelo senhor António Fandino que apreciava muito estes dois “trutas irreverentes”.

   Ao passarem pela tardinha, na Rua Direita, pela garagem do Fandino, estes dois aventureiros iam em corrida acelerada, olhando para trás…
Rapazes, o que é que vocês vão fazer com as afungas,  gritou  o senhor António?
Já sei que vão para a vadiagem seus malandros, concluiu o Fandino para o João e o Quim Tripas que corriam como galgos, atrás das lebres…
 Pela tardinha, os nossos heróis aproximaram-se do muro do matadouro, tomando posição de disparo e o desafio era fazer um buraquinho redondo, sem partir o vidro.
As primeiras “afungadas” do Quim Tripas partiram logo dois vidros que se estilhaçaram no chão.
  O João Papinhas não quis ficar atrás e com dois disparos, mais dois vidros partidos, perante o delírio do Quim Tripas que abanava a cabeça de contentamento...
Os melros cantavam nas árvores do campo do serralheiro, anunciando a noite que se aproximava vertiginosamente, com o sol a dizer o “último adeus” nos limites da restinga, o grande braço de areia  que aconchega as águas do nosso rio Cávado e do gigante Oceano Atlântico.
   Seguiram-se mais disparos e passados minutos, as janelas tinham quase todos os vidros partidos e os dois “mariolas”, regressaram ao Largo dos Peixinhos, com a missão cumprida,  para lavar as mãos no lago e descansarem um pouco  nos bancos ripados avermelhados do  jardim.
 No dia seguinte, o Zé da Vila deparou-se com o desastre no matadouro e começou as suas investigações para apanhar os “criminosos”, falando com a vizinhança da central.
 O Virgílio, “O parafuso”  que estava nas redondezas do matadouro tinha assistido às fisgadas do Quim e do João e denunciou-os à GNR e os autores da proeza e o denunciante foram chamados ao posto, no dia seguinte, para prestarem declarações.
  O cabo da GNR olhou para o trio e perguntou quem é que tinha partido os vidros do matadouro sob  gestos ameaçador do agente Oliveira.
  O Virgílio respondeu de imediato que tinha sido os seus dois amigos e estes  confessaram o crime mas, a “coisa” não ficou por ali…
O João Papinhas disse ao GNR que o Virgílio também tinha partido os vidros, e o Quim Tripas confirmou a denúncia e logo aí o “caldo ficou entornado…”!
  Meus amigos, para não apanharem umas vergastadas, os vossos pais irão pagar os estragos e  vão ser informados disto.
   O Virgílio ao sair do posto,  sacudiu  os calções de ganga cheios de serrim, perante o olhar ameaçador do João Papinhas e do Quim Tripas, e saiu furioso em direção a casa, dando a conhecer ao pai do acontecimento.
   O Virgílio, de recompensa, ainda levou umas “lostras” do pai que não acreditou na inocência do filho e de castigo foi para a carpintaria ajudar o pai e o Carlos Gaspar que estava fazer umas  cadeiras de cozinha.
   O Quim Tripas, olhou para o João Papinhas e disse-lhe:
  Por ele nos ter denunciado, o  “Parafuso” pagou as “favas ao dono” e isto não vai ficar por aqui…
 Os  vidros foram colocados e pagos, com sacrifício, pela mãe do Papinhas, Amélia  contudo a mãe do  Quim Tripas não tinha ”posses” para pagar as despesas e, como castigo, o Tripas  passou alguns dias a engraxar os “ plainitos” dos GNRs .O  pai do Virgílio colocou os vidros todos nas janelas, do matadouro que ficou com  melhor apresentação embora, não por muito tempo porque estes aventureiros mais cedo ou mais tarde, iriam fazer novos tiros ao alvo…
 O Quim Tripas, no dia seguinte, partiu para novas aventuras e deslocou-se para a junqueira para apanhar cobras de água para as  vender na Farmácia Monteiro por cinco croas cada uma, e logo a pronto pagamento…
Com os agradecimentos da Bertinha e do senhor Monteiro, sempre simpáticos e solidários, ao Quim Tripas, pela caçada dos ofídios, estes foram colocados em frascos para “experiências” e como “mesinhas”, contra o reumatismo e outras maleitas físicas..
  O Quim Tripas deu algum desse dinheirinho à sua mãe e irmãs para reforço dos almoços e jantares já que os tempos eram de “míngua”…
   Com uns trocos, o Quim Tripas, sempre descalço, foi à Havaneza comer uma sande e um galão, sendo servido, pelo sempre desconfiado senhor Franquelim designado pela rapaziada da ribeira por “calcinhas”…
  O Quim Tripas teve um lanche de “rico” e depois do repasto, pegou numa cobra que tinha numa caixa de fósforos e soltou-a e alguns clientes começaram a fugir do café, derrubando algumas cadeiras  e desviando as pesadas mesas da Havaneza, perante o desespero do senhor Franquelim que  se refugiou  dentro do balcão.
   O senhor Zé Praia, com os seus graduados óculos, que estava a jogar às Damas com o senhor Carvalho, relojoeiro, nem se mexeu do lugar, tal era a concentração ao jogo.
 O Quim Tripas pegou na cobra que serpenteava pelo chão do café, meteu-a na caixa de amorfos “Quinas” e saiu em grande correria pela porta fora porque temia que uma vassoura voasse em sua direção!
  Estava consumada mais uma das  aventuras do Quim Tripas, menino traquina, simpático, aventureiro, irreverente, ágil como um leopardo, corajoso como um felino, e que conseguia sobreviver nesses  tempos muito difíceis. Em Esposende, proliferavam famílias muito carenciadas, onde a “fome” batia à maioria das famílias esposendenses.
   Muitas crianças só usavam sapatos aos domingos e nos resto da semana, andavam descalços calcorreando ruas poeirentas e empedradas e caminhos de terra batida.
   O nosso Quim Tripas tinha o “seu Mundo de Aventuras”, fazendo relembrar os livrinhos  que se vendiam na Primorosa e que tinham esse mesmo nome: MUNDO DE AVENTURAS.
   O seu preço era de dois escudos mas, a criançada limitava-se a olhar para eles, colocados naquela montra da Primorosa mas, os dois escudos eram melhor empregues  na compra de uma sêmea na Padaria beirão e de um naco de marmelada comprada na Nazaré  e no António do Sul ou mesmo um pirolito ou laranjada “Canada Dry” que se vendiam na Lucas.
  O Quim Tripas era mesmo assim, um menino, agora distinto e respeitável homem, irreverente e sagaz, um lutador pela aventura e que o “Pescador de histórias” se orgulha em recordar.