Republicação
“Tiro aos vidros”
“Tiro aos vidros”
Esposende despertou pela manhã, com os sinos da Matriz a dar as sete horas
matinais.
Já em pleno julho, as crianças fora da
escola, gozavam as suas férias tão
desejadas para se deleitarem na ribeira com os seus varais, a sua relva
despenteada e os juncos abanando como que acenando à miudagem para os levarem
até às pocinhas do rio para se encherem
de lagostas para o repasto matinal.
Na rua Conde de Agrolongo, o Quim
Tripas-Joaquim Eiras Gonçalves- já afinava a afunga e enchia os bolsos de godos,
apanhados nos areais da praia ou nos montes de areia das casas em construção.
Os dois comparsas, observaram as janelas do
matadouro, sempre atentos ao Zé da Vila que guardava as instalações, e
começaram os preparativos, recheando os bolsos de godos e reforçaram a pelica das afungas, feitas, com
paciência por estes dois rapazinhos irreverentes, com as borrachas de “cambras
de ar” dadas pelo senhor António Fandino que apreciava muito estes dois “trutas
irreverentes”.
Ao passarem pela tardinha, na Rua Direita, pela
garagem do Fandino, estes dois aventureiros iam em corrida acelerada, olhando
para trás…
Rapazes, o que é que
vocês vão fazer com as afungas,
gritou o senhor António?
Já sei que vão para a
vadiagem seus malandros, concluiu o Fandino para o João e o Quim Tripas que corriam
como galgos, atrás das lebres…
Pela tardinha, os nossos heróis aproximaram-se
do muro do matadouro, tomando posição de disparo e o desafio era fazer um
buraquinho redondo, sem partir o vidro.
As primeiras
“afungadas” do Quim Tripas partiram logo dois vidros que se estilhaçaram no
chão.
O João Papinhas não quis ficar atrás e com
dois disparos, mais dois vidros partidos, perante o delírio do Quim Tripas que
abanava a cabeça de contentamento...
Os melros cantavam
nas árvores do campo do serralheiro, anunciando a noite que se aproximava
vertiginosamente, com o sol a dizer o “último adeus” nos limites da restinga, o
grande braço de areia que aconchega as
águas do nosso rio Cávado e do gigante Oceano Atlântico.
Seguiram-se mais disparos e passados
minutos, as janelas tinham quase todos os vidros partidos e os dois “mariolas”,
regressaram ao Largo dos Peixinhos, com a missão cumprida, para lavar as mãos no lago e descansarem um
pouco nos bancos ripados avermelhados
do jardim.
No dia seguinte, o Zé da Vila deparou-se com o
desastre no matadouro e começou as suas investigações para apanhar os
“criminosos”, falando com a vizinhança da central.
O Virgílio, “O parafuso” que estava nas redondezas do matadouro tinha
assistido às fisgadas do Quim e do João e denunciou-os à GNR e os autores da
proeza e o denunciante foram chamados ao posto, no dia seguinte, para prestarem
declarações.
O cabo da GNR olhou para o trio e perguntou
quem é que tinha partido os vidros do matadouro sob gestos ameaçador do agente Oliveira.
O Virgílio respondeu de imediato que tinha
sido os seus dois amigos e estes confessaram o crime mas, a “coisa” não ficou
por ali…
O João Papinhas disse
ao GNR que o Virgílio também tinha partido os vidros, e o Quim Tripas confirmou
a denúncia e logo aí o “caldo ficou entornado…”!
Meus amigos, para não apanharem umas
vergastadas, os vossos pais irão pagar os estragos e vão ser informados disto.
O Virgílio ao sair do posto, sacudiu os calções de ganga cheios de serrim, perante
o olhar ameaçador do João Papinhas e do Quim Tripas, e saiu furioso em direção
a casa, dando a conhecer ao pai do acontecimento.
O Virgílio, de recompensa, ainda levou umas
“lostras” do pai que não acreditou na inocência do filho e de castigo foi para
a carpintaria ajudar o pai e o Carlos Gaspar que estava fazer umas cadeiras de cozinha.
O Quim Tripas, olhou para o João Papinhas e
disse-lhe:
Por ele nos ter denunciado, o “Parafuso” pagou as “favas ao dono” e isto
não vai ficar por aqui…
Os
vidros foram colocados e pagos, com sacrifício, pela mãe do Papinhas,
Amélia contudo a mãe do Quim Tripas não tinha ”posses” para pagar as
despesas e, como castigo, o Tripas passou
alguns dias a engraxar os “ plainitos” dos GNRs .O pai do Virgílio colocou os vidros todos nas
janelas, do matadouro que ficou com
melhor apresentação embora, não por muito tempo porque estes
aventureiros mais cedo ou mais tarde, iriam fazer novos tiros ao alvo…
O Quim Tripas, no dia seguinte, partiu para
novas aventuras e deslocou-se para a junqueira para apanhar cobras de água para
as vender na Farmácia Monteiro por cinco
croas cada uma, e logo a pronto pagamento…
Com os agradecimentos
da Bertinha e do senhor Monteiro, sempre simpáticos e solidários, ao Quim
Tripas, pela caçada dos ofídios, estes foram colocados em frascos para
“experiências” e como “mesinhas”, contra o reumatismo e outras maleitas
físicas..
O Quim Tripas deu algum desse dinheirinho à
sua mãe e irmãs para reforço dos almoços e jantares já que os tempos eram de
“míngua”…
Com uns trocos, o Quim Tripas, sempre
descalço, foi à Havaneza comer uma sande e um galão, sendo servido, pelo sempre
desconfiado senhor Franquelim designado pela rapaziada da ribeira por
“calcinhas”…
O Quim Tripas teve um lanche de “rico” e
depois do repasto, pegou numa cobra que tinha numa caixa de fósforos e soltou-a
e alguns clientes começaram a fugir do café, derrubando algumas cadeiras e desviando as pesadas mesas da Havaneza,
perante o desespero do senhor Franquelim que
se refugiou dentro do balcão.
O senhor Zé Praia, com os seus graduados
óculos, que estava a jogar às Damas com o senhor Carvalho, relojoeiro, nem se
mexeu do lugar, tal era a concentração ao jogo.
O Quim Tripas pegou na cobra que serpenteava
pelo chão do café, meteu-a na caixa de amorfos “Quinas” e saiu em grande
correria pela porta fora porque temia que uma vassoura voasse em sua direção!
Estava
consumada mais uma das aventuras do Quim
Tripas, menino traquina, simpático, aventureiro, irreverente, ágil como um
leopardo, corajoso como um felino, e que conseguia sobreviver nesses tempos muito difíceis. Em Esposende,
proliferavam famílias muito carenciadas, onde a “fome” batia à maioria das
famílias esposendenses.
Muitas crianças só usavam sapatos aos
domingos e nos resto da semana, andavam descalços calcorreando ruas poeirentas
e empedradas e caminhos de terra batida.
O nosso Quim Tripas tinha o “seu Mundo de
Aventuras”, fazendo relembrar os livrinhos
que se vendiam na Primorosa e que tinham esse mesmo nome: MUNDO DE
AVENTURAS.
O seu preço era de dois escudos mas, a
criançada limitava-se a olhar para eles, colocados naquela montra da Primorosa
mas, os dois escudos eram melhor empregues
na compra de uma sêmea na Padaria beirão e de um naco de marmelada
comprada na Nazaré e no António do Sul
ou mesmo um pirolito ou laranjada “Canada Dry” que se vendiam na Lucas.
O Quim Tripas era mesmo assim, um menino,
agora distinto e respeitável homem, irreverente e sagaz, um lutador pela
aventura e que o “Pescador
de histórias” se orgulha em
recordar.