CANTINHO DOS LOBOS DO MAR
por Carlos Barros
O Toninho foi fintado….
Era
uma segunda-feira, dia de feira quinzenal em Esposende, com o habitual
alvoroço, no Largo Rodrigues Sampaio, com as tendeiras e feirantes a montarem
as suas tendas e, pelas seis horas da manhã, já a Jandirinha, ajudado pelo
filho Pedrinho, menino de doze anos, espetava os ferros para prender as pontas das
varas, com cordas, que constituía a estrutura do toldo.
As
peças de tecido e miudezas - alfinetes, ganchos de cabelo, elástico, rendilhas,
tubos de linhas, agulhas, colchetes…, eram colocadas numa banca, assente em cavaletes
feitos pelo Carlinhos com a ferramenta do pai ou pelo Hermenigildo.
As
barracas espalhavam-se, como cogumelos, pelo Largo da feira com as roupas, cobertores
colchas, “samarras”, sapatos e botas, de toda a qualidade e feitio. As botas de
sola de “borracha de avião”, para as crianças, eram as mais procuradas pelos
clientes porque o inverno aproximava-se e esse calçado resistia às intempéries,
mesmo com os jogos da bola na ribeira…
O
trânsito estava acelerado, com os carrinhos de mão transportando legumes e
hortaliças, empurrado pelas lavradeiras de Góios, Marinhas, S. Bartolomeu,
Apúlia e Gandra, “capital concelhia dos deliciosos nabos”.
A
tia Louceira já estava instalada, no lado nascente do Largo, com a sua louça
espalhada - alguidares, cântaros, bacias, travessas, copos, chocolateiras,
panelas, pois a “era do plástico” ainda estava um pouco distante.
A
feira periódica em Esposende, era o eclodir de uma base económica local muito
importante e Esposende fervilhava de movimento comercial, social e humano e com
esta feira, Esposende despertava da melancolia diária porque era uma vila
pacata e com muito pouco movimento.
Em
todo o espaço do Largo Rodrigues Sampaio e parte da ribeira norte, se espalhavam-se
barraquinhas, tendas vendendo os mais diversos artigos e em plena ribeira
estava o gado a ser negociado pelos comerciantes com as mãos cheias de notas de
cem e quinhentos escudos, discutindo, gesticulando e “bufando” à procura de
embaratecer, o preço do gado, sob o ruído ensurdecedor do grunhir dos porcos.
Junto
à casa da Ciloca estava a ser montado o Circo “Torralvo” com a criançada a
assistir à sua demorada montagem e a olhar para alguns animais enjaulados.
Na
loja/armazém de cereais do Abílio Coutinho, o dia de feira era de incessante
trabalho na pesagem do feijão, milho e outros cereais que as mulheres
lavradeiras do concelho vinham vender, sendo esse cereal logo ensacado, depois
de ser pago aos vendedores. No balcão com a sua longa pedra amarela de
“mármore”, o Tio Abílio e o Carlinhos iam servindo os clientes habituais,
vendendo arroz carolino ou agulha-saco-, sabão rosa, queijo, figos de cera, marmelada e outros
produtos de mercearia.
Pelo
meio da manhã, alguns pescadores vinham comprar tabaco- “Kentuques”, Negritas, Provisórios,
geralmente “fiado”, normalmente os mais baratos, já que os maços da marca,
com filtro, Estoril, SG-Ventil,
Paris, Sagres, Porto, Sintra, Benfica,
Sporting entre outros, tinham clientes mais
“abastados”…
Foi
uma manhã de árduo trabalho e os sacos foram-se enchendo de milho e feijão
apatalado, mistura, manteiga, moleiro, branco, rajado…-, sendo amarrados com
corda e amontoados contra a parede que eram os bancos dos pescadores quando
bebiam a sua tigelinha, um “cagão” ou um copinho de aguardente com aniz em que
o Tio Chora era cliente diário, chegando mesmo a levar aguardente num
frasquinho que o colocava no bolso do casaco quando regressava a casa.
Eram
quase quatro horas da tarde, já com menos movimento no armazém, quando chegou o
senhor José da Lucas, acompanhado pelo
Manel Pezinho para beber a sua malguinha de vinho carrascão, fornecido
pelo Firmino de Vila Cova que o transportava, quase sempre à noite, num camião com o Manel Cunha e o Augusto a
ajudarem a pipa a rolar sobre rolos-toros- de madeira para as traseiras do
armazém, onde estava a tasca. Com uns figuinhos ou uma chouricinha, estes
pescadores lá iam bebendo, o precioso líquido, mas sempre moderadamente, ao
contrário de outros que bebiam até cair….
Com
o relógio da Igreja matriz, a dar as cinco horas, o Toninho entrou de rompante
na loja para beber o seu copo mas, por grande azar, o Carlinhos estava ao balcão
e ele sabia que o sobrinho do senhor Abílio não lhe dava vinho. A Tia Alice
encontrava-se na tasca a servir um copo ao senhor Fernandinho que, com as suas
mãos pretas de ferrugem e óleo, votava umas malguinhas “abaixo” da goela, sem
respirar…”Estas já se foram” dizia ele, com o seu ar de homem atarefado….
Carlinhos,
dá-me uns sugos, pediu o Toninho ao Carlinhos que estava desconfiado perante
tal inusitado pedido.
Será
que o Toninho me quer entreter a buscar os sugos e vai lá para trás beber uma
tigela, pensou o Carlinhos!...Fazendo uma simulação que ia buscar os sugos, o
Carlinhos sempre a olhar para o Toninho e este “zás”, num ápice desapareceu
para beber a tigela…
Já
a tia Alice estava com a caneca a despejar o vinho para a malga do Toninho,
apareceu o Carlinhos que num gesto de coragem e rapidez, afastou a caneca da
malga, enquanto a tia Alice olhava surpreendida com esta situação!
Tia,
está a dar de beber a uma criança, isso comigo não faz, senão vou-me já embora
para casa, ameaçou o Carlinhos. Por mais estranho que pareça, a Tia Alice ficou
imobilizada e teve a sensatez de compreender o gesto do sobrinho….
O
Toninho espantado, olhou para o Carlinhos e, sem ameaças, o que era raro, desabafou:
-“Filha
da mãe, tive azar, mas para a próxima, quando não estiveres vou encharcar umas
valentes tigelas….
O
Toninho saiu do armazém, encostadinho à parede e já na saída, foi perseguido
pelo Carlinhos, em curta correria porque já levava uma cerveja cristal
surripiada, de uma das muitas grades que estavam junto à parede da loja.
Hoje
foi o meu dia de azar lastimou o Toninho quando se dirigia para a ribeira ou,
provavelmente, para a Zezinha da Labrista, para “matar” a sede….
O
Carlinhos regressou para junto dos amontoados de sacos de milho e feijão, para
ouvir o senhor Zé da Lucas a contar a sua vida no navio de fio e do Brasil, onde
viveu alguns anos.
“Pescador de histórias”
Esposende 15 de Setembro de 2014
Eram quase quatro horas da tarde, já com menos movimento no armazém, quando chegou o senhor José da Lucas, acompanhado pelo Manel Pezinho para beber a sua malguinha de vinho carrascão, fornecido pelo Firmino de Vila Cova que o transportava, quase sempre à noite, num camião com o Manel Cunha e o Augusto a ajudarem a pipa a rolar sobre rolos-toros- de madeira para as traseiras do armazém, onde estava a tasca. Com uns figuinhos ou uma chouricinha, estes pescadores lá iam bebendo, o precioso líquido, mas sempre moderadamente, ao contrário de outros que bebiam até cair….
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