terça-feira, 7 de outubro de 2014

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR

por Carlos Barros

O Toninho foi fintado….
Era uma segunda-feira, dia de feira quinzenal em Esposende, com o habitual alvoroço, no Largo Rodrigues Sampaio, com as tendeiras e feirantes a montarem as suas tendas e, pelas seis horas da manhã, já a Jandirinha, ajudado pelo filho Pedrinho, menino de doze anos, espetava os ferros para prender as pontas das varas, com cordas, que constituía a estrutura do toldo.           
As peças de tecido e miudezas - alfinetes, ganchos de cabelo, elástico, rendilhas, tubos de linhas, agulhas, colchetes…, eram colocadas numa banca, assente em cavaletes feitos pelo Carlinhos com a ferramenta do pai ou pelo Hermenigildo.
As barracas espalhavam-se, como cogumelos, pelo Largo da feira com as roupas, cobertores colchas, “samarras”, sapatos e botas, de toda a qualidade e feitio. As botas de sola de “borracha de avião”, para as crianças, eram as mais procuradas pelos clientes porque o inverno aproximava-se e esse calçado resistia às intempéries, mesmo com os jogos da bola na ribeira…
     O trânsito estava acelerado, com os carrinhos de mão transportando legumes e hortaliças, empurrado pelas lavradeiras de Góios, Marinhas, S. Bartolomeu, Apúlia e Gandra, “capital concelhia dos deliciosos nabos”.
      A tia Louceira já estava instalada, no lado nascente do Largo, com a sua louça espalhada - alguidares, cântaros, bacias, travessas, copos, chocolateiras, panelas, pois a “era do plástico” ainda estava um pouco distante.
A feira periódica em Esposende, era o eclodir de uma base económica local muito importante e Esposende fervilhava de movimento comercial, social e humano e com esta feira, Esposende despertava da melancolia diária porque era uma vila pacata e com muito pouco movimento.
      Em todo o espaço do Largo Rodrigues Sampaio e parte da ribeira norte, se espalhavam-se barraquinhas, tendas vendendo os mais diversos artigos e em plena ribeira estava o gado a ser negociado pelos comerciantes com as mãos cheias de notas de cem e quinhentos escudos, discutindo, gesticulando e “bufando” à procura de embaratecer, o preço do gado, sob o ruído ensurdecedor do grunhir dos porcos.
Junto à casa da Ciloca estava a ser montado o Circo “Torralvo” com a criançada a assistir à sua demorada montagem e a olhar para alguns animais enjaulados. 
       Na loja/armazém de cereais do Abílio Coutinho, o dia de feira era de incessante trabalho na pesagem do feijão, milho e outros cereais que as mulheres lavradeiras do concelho vinham vender, sendo esse cereal logo ensacado, depois de ser pago aos vendedores. No balcão com a sua longa pedra amarela de “mármore”, o Tio Abílio e o Carlinhos iam servindo os clientes habituais, vendendo arroz carolino ou agulha-saco-, sabão rosa,   queijo, figos de cera, marmelada e outros produtos de mercearia.
Pelo meio da manhã, alguns pescadores vinham comprar tabaco- “Kentuques”, Negritas, Provisórios, geralmente “fiado”, normalmente os mais baratos, já que os maços da marca, com  filtro, Estoril, SG-Ventil, Paris,  Sagres, Porto, Sintra, Benfica, Sporting entre outros, tinham clientes mais      “abastados”…
          Foi uma manhã de árduo trabalho e os sacos foram-se enchendo de milho e feijão apatalado, mistura, manteiga, moleiro, branco, rajado…-, sendo amarrados com corda e amontoados contra a parede que eram os bancos dos pescadores quando bebiam a sua tigelinha, um “cagão” ou um copinho de aguardente com aniz em que o Tio Chora era cliente diário, chegando mesmo a levar aguardente num frasquinho que o colocava no bolso do casaco quando regressava a casa.
            Eram quase quatro horas da tarde, já com menos movimento no armazém, quando chegou o senhor José da Lucas, acompanhado pelo  Manel Pezinho para beber a sua malguinha de vinho carrascão, fornecido pelo Firmino de Vila Cova que o transportava, quase sempre à noite, num  camião com o Manel Cunha e o Augusto a ajudarem a pipa a rolar sobre rolos-toros- de madeira para as traseiras do armazém, onde estava a tasca. Com uns figuinhos ou uma chouricinha, estes pescadores lá iam bebendo, o precioso líquido, mas sempre moderadamente, ao contrário de outros que bebiam até cair….
           Com o relógio da Igreja matriz, a dar as cinco horas, o Toninho entrou de rompante na loja para beber o seu copo mas, por grande azar, o Carlinhos estava ao balcão e ele sabia que o sobrinho do senhor Abílio não lhe dava vinho. A Tia Alice encontrava-se na tasca a servir um copo ao senhor Fernandinho que, com as suas mãos pretas de ferrugem e óleo, votava umas malguinhas “abaixo” da goela, sem respirar…”Estas já se foram” dizia ele, com o seu ar de homem atarefado….
 Carlinhos, dá-me uns sugos, pediu o Toninho ao Carlinhos que estava desconfiado perante tal inusitado pedido.
 Será que o Toninho me quer entreter a buscar os sugos e vai lá para trás beber uma tigela, pensou o Carlinhos!...Fazendo uma simulação que ia buscar os sugos, o Carlinhos sempre a olhar para o Toninho e este “zás”, num ápice desapareceu para beber a tigela…
Já a tia Alice estava com a caneca a despejar o vinho para a malga do Toninho, apareceu o Carlinhos que num gesto de coragem e rapidez, afastou a caneca da malga, enquanto a tia Alice olhava surpreendida com esta situação!
Tia, está a dar de beber a uma criança, isso comigo não faz, senão vou-me já embora para casa, ameaçou o Carlinhos. Por mais estranho que pareça, a Tia Alice ficou imobilizada e teve a sensatez de compreender o gesto do sobrinho….
O Toninho espantado, olhou para o Carlinhos e, sem ameaças, o que era raro, desabafou:
-“Filha da mãe, tive azar, mas para a próxima, quando não estiveres vou encharcar umas valentes tigelas….
O Toninho saiu do armazém, encostadinho à parede e já na saída, foi perseguido pelo Carlinhos, em curta correria porque já levava uma cerveja cristal surripiada, de uma das muitas grades que estavam junto à parede da loja.
          Hoje foi o meu dia de azar lastimou o Toninho quando se dirigia para a ribeira ou, provavelmente, para a Zezinha da Labrista, para “matar” a sede….
            O Carlinhos regressou para junto dos amontoados de sacos de milho e feijão, para ouvir o senhor Zé da Lucas a contar a sua vida no navio de fio e do Brasil, onde viveu alguns anos.

“Pescador de histórias”
Esposende 15 de Setembro de 2014 

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