segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR - “Por rios, nunca dantes navegados…”

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR - “Por rios, nunca dantes navegados…”

Por Carlos Barros

   Estávamos  em plena época natalícia e era tempo das férias de Natal, momento para as grandes aventuras, com a mente destas crianças da ribeira, viradas para o Pai Natal,  presépio e para as saborosas mas, modestas , prendas no sapatinho.
  Nos anos sessenta e setenta, a “rapaziada”  da  vila de Esposende,  tinha os seus territórios definidos e eram  acérrimos defensores dos mesmos: o Norte e o Sul.  A Central, a Lagoa e o Jardim,  eram “domínios” com pouca presença “militar” e em  momentos “quentes”,  distribuíam-se  pelo Norte ou pelo Sul.
    No território sulista,  imperava o secretismo porque os “altos comandos”, “O Speedy”, Fernando “O Poupinha”, Chico Viana, Chico “Manata”, Mário Trabuqueta e o Gonçalo estavam em reunião, num barraco- Escola Naútica de Esposende- pertencente ao Quim serralheiro.  O “itinerante” e respeitado Quim Tripas, com a sua armadura em cartão duro e uma espada em madeira, de cor prateada, mantinham a segurança ao acampamento. As hostes sulistas receavam  incursões dos nortistas mais belicistas, já que o “renegado” nortista Fernando Quintino, habitante da “fortaleza de S. Vicente de Paulo”,  tinha sido visto a vigiar o acampamento, pelas “bandas” da casa do Fernandinho e da “Minórica”.
   Com “mapas  marítimos”-portulanos, feitos com papel grosso de embrulhar o bacalhau, e rascunhos, elaborados magistralmente pelo cerebral “Speedy”, traçavam-se planos de atuação para a grande
“Expansão Marítima” ao rio Cávado, tentando descobrir-se novas ilhas (torrões no meio do rio) e expulsar as gaivotas e maçaricos que tanto incómodo causavam  a estes ousados exploradores e navegadores.
   Era necessário uma  “Nau” e o  Chico  Viana, levantou a voz dizendo que tinha uma em casa, o que criou “suspense” em todos os navegadores presentes. Em grande correria, o Chico foi a casa, aproveitando a ausência da mãe, que tinha ido à ribeira estender roupa para corar, e na sua sala estava um grande baú que guardava a roupa da família.
Sem hesitar, o Chico  arrancou, com um martelo enferrujado, as dobradiças do tampo do malão, os pregos voaram contra o estuque da parede,  e  a improvisada “Nau” foi trazida às costas, para junto dos seus amigos que estavam ansiosamente à espera da prometida embarcação, a “Nau Chiconeta”-Catrineta-.
   Quando os “navegadores guerreiros” viram a  barcaça,  foi o delírio !
  Quem vai ser o Capitão do Barco, questionou o Mário Trabuqueta, também conhecido por “Faísca”?
   O   Gonçalo , gritou :
- Tem de ser o Quim Tripas que é o mais velho e corajoso e nada como um peixe !
   Meus amigos, é preciso muita corda para prendermos a “Nau”, apelou o  “Speedy” aos seus subordinados,  que estavam a comer umas uvas “surripiadas “ do campo do Emilinho, na noite anterior.
   Passada meia hora, a rapaziada tinha trazido vários metros de corda necessária para o empreendimento marítimo.
  A “Nau”, que tinha sido colocada , junto do campo do Emilinho, foi levada para o cais sul para os preparativos finais. As expectativas eram enormes em descobrir “novos mundos e novas paragens” e cerebral “Speedy”, o “grande Infante D. Henrique”, mandou prender a “Nau” à extensa corda, cheia de nós, à proa “quadrada” da embarcação, cujo casco  era de luxo, já que era forrada ou calafatada com couro grosso tornando-a resistente e impermeável.
  Os aparelhos de navegação limitavam-se, não a um astrolábio improvisado, mas um “quadrante”- quatro navegadores- que  faziam os seus palpites a “olho nu-”.
  O grande “capitão de Mar”, Quim Tripas descalço,  meteu-se dentro da “Nau”, equilibrando-se, e com a maré a encher, lá foi navegando em direção ao “desconhecido” ou melhor, aos torrões .
 A rapaziada no cais, comandados pelo  burguês mercantil,  Trabuqueta, vestido de calça branca, com fidalguia, ia largando lentamente, a corda até que esta “acabou” e a “Nau” começou a balançar perigosamente, contra as ondas do “Oceano Cávado” e o inesperado aconteceu: a “Nau Chiconeta” naufragou e  afundou-se na “fossa de Mindanau- poço do Matadouro- e o Quim Tripas, excelente nadador,  com umas braçadas chegou a terra firme, sendo aplaudido pelos restantes navegadores e guerreiros do clero esposendense.
  Se a minha mãe descobrir não irei ter prendas, neste Natal, no sapatinho, lamentava o Chico!
  Não há problema, disse o ilustre “ Infante D. Henrique”, amanhã iremos descobrir a “Nau” no fundo do rio, e trazemo-la para tua casa…
  O Chico, nessa noite nem dormiu e a sorte dele é que a mãe, Elisinha Alves, ainda não tinha, milagrosamente,  notado pela falta da tampa do baú .
 Pela manhã, o “exército” reuniu, sob o comando do Quim Tripas, recentemente promovido a “Capitão de Barco”  e, com a maré vaza, lá foram  para o meio do rio até ao local do naufrágio. Com tanta sorte, lá estava a “Chiconeta”  enterrada no areal, já cheia de limo e com irões e caranguejas a deleitarem-se sobre o forro de  pele, espreguiçando-se, no cavername  da “nau”.
 A  “Chiconeta” foi transportada para terra, com o Chico  todo sorridente, com a recuperação da faustosa embarcação…
 
 O restante “maralhal” foi para o acampamento para prepararem as espadas e os cavalos para a guerra Norte-Sul que se aproximava.
 O Zé Alberto dispunha de material de guerra moderno, como espadas, elmos e armaduras em folheta zincada, feito na oficina do pai, o que provocava inveja aos seus companheiros combatentes cujo modesto armamento, era feito de madeira dos caixotes do sabão e de latas das salsichas, como escudos. O exército popular dispunha de simples arcos e flechas de vime verde e resinoso, apenas o Armindo “carabina”, dispunha desse armamento, feitos com  varetas de guarda-chuvas, última tecnologia da moda!
 Já  em casa,  a Elisinha, mãe do Chico, pela noitinha chamou-o e disse-lhe:
  Que mala é esta, quem foi que fez isto?
  O Chico  abanou a cabeça e tremendo como “varas verdes” respondeu  que nada sabia…
  Está bem, meu menino, desabafou a bondosa Elisinha, mas eu, nem quero saber mais da história porque senão temos festa aqui em casa…
  O Chico serenou, foi para a cama e dormiu um sono profundo, sonhando com os grandes navegadores portugueses  e com o grande Quim Tripas e “Speedy”, o “Infante D. Henrique de Esposende”, que enfrentaram as sombras das Torres do Ofir- Adamastor-  e as mortíferas vagas do  rio Cávado.
  Nesse ano de mil novecentos e sessenta e um, num tempo de paz e harmonia, com o Natal “às portas”, foram  declaradas tréguas entre o Norte e o Sul, não por muito tempo, porque estas crianças aventureiras e irrequietas,  precisavam sempre de ação e para elas, parar  era morrer!
                                
            CARLOS BARROS

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