Calcorreando os corredores da “história”…
Terminado o Curso na Escola Normal do
Porto (Antigo Magistério Primário) o
nosso amigo Lima, recém formado, esperava pela colocação e, quem tivesse obtido
uma boa nota-Classificação/habilitação-, o trabalho estaria mais acessível,
provavelmente numa Escola nos “confins do mundo”, onde a “civilização estaria
adormecida” ou teimava em hibernar…
O Lima, já professor encartado/diplomado, foi
tomar o seu pingo ao café Nélia servido pelo simpático e sempre sorridente,
João “Tamanqueiro” ou pelo Benajamim “Come croas”. O verão estava na despedida
e, inopinadamente, à entrada deste
estabelecimento, apareceu a sua mãe Jandirinha com uma carta na mão, bem
apertadinha. Era o pronúncio de uma novidade- trabalho- , missiva há muito
tempo esperada…
Ainda se podia frequentar os
cafés com os amigos e não se augurava ,
na altura, o terrível surto
epidémico actual e o COVID 19 morava nos sonhos dos homens.
O Lima, muito expectante, abriu o envelope e
pensou logo que devia ser a sua colocação numa Escola, um primeiro passo para o
“mundo do trabalho”, como docente e não se enganou…
Dentro do sobrescrito,
estava um Alvará, já com o destino marcado: Escola de Asnela, freguesia de
Riodouro, Cabeceiras de Basto….O dia vinte e cinco de outubro de 1979 marca o
princípio de uma aventura em terras de Cabeceiras de Basto, numa das “aldeias”
da freguesia de Riodouro, umas das maiores do País, em termos de área …
Por força do destino, o professor Abreu,
grande amigo do Lima, também foi colocado nessa mesma Escola e ainda bem,
porque reencontrou-se uma dupla de amigos de infância, clientes assíduos de aventuras
da ribeira e do rio Cávado.
O senhor Pilar, um “velho e solidário” amigo
do Lima, com o seu largo chapéu, homem de espírito extremamente bondoso, deu
boleia no seu Austin, a esta “dupla”, e lá foram com destino a Asnela ,
percorrendo a estrada das “seiscentas curvas” da Póvoa de Lanhoso... Asnela, tinha
um acesso difícil, um caminho ou melhor, uma espécie de “estrada paleolítica”
esburacada, lamacenta e bastante estreita. Fez-me relembrar, as picadas e os
estradões da Guiné mas, sem capim e sem minas…
Após a
visita à Escola de Asnela os dois professores neófitos, ficaram instalados na vila
de Cabeceiras de Basto, na Pensão Vilela onde pernoitaram, um pouco desanimados
com as péssimas condições de alojamento e trabalho que presenciaram.
No dia seguinte, o Lima foi ver a Escola Primária e ficou absorto e estupefacto ao olhar para aquele “edifício” que parecia arrasado por uma bom “napalm” com o telhado caído, traves podres, entrava água por todos os lados, a porta tinha um ferrolho bloqueado e a fechadura estava enferrujada até à medula… Os dossiers dos alunos encontravam-se espalhados pelo chão e pelas carteiras repletas de caruncho e os bancos chiavam como “ratos” enraivecidos…Para ter acesso à “escola, existiam dois degraus , “ornamentados” com musgo, com garantia de queda…
O insatisfeito e revoltado Lima, falou com o
senhor João, o “Homem-Grande “ da aldeia e disse-lhe que ia embora e não aceitava
a escola, afirmando que era um atentado à dignidade dos alunos e dos
professores.
No dia seguinte, o Delegado Escolar Professor
Artur tomou conhecimento das condições da Escola tendo ido, com a sua Renault
4, observá-la com o professor Lima, e reconheceu que de facto, aquilo parecia
um “palheiro” e impróprio para ser utilizado e decidiu arranjar outro local.
Uma “nova/velha” escola foi encontrada, numa
casa, com divisões de madeira ressequida com um telhado com “ar condicionado”
e, por debaixo, havia um curral de vacas e bois, que no Inverno funcionava como
uma improvisada “salamandra” mas, como é natural, todas as manhãs, para se
iniciarem as aulas, a dona do gado tinha que o retirar para se deslocarem para novas pastagens e, deste modo, os alunos já
não ouviam a orquestra sinfónica dos muares das vacas…
O leite escolar era serviço em pacotes de
litro e ainda não havia as embalagens individuais, fervido numa grande panela
na Escola e, no final das aulas, os professores levavam essa panela para casa
para evitar visitas dos ratos que eram atraídos pelo cheiro do leite, o que
acontecia no início dos primeiros dias de aulas. Era a caça aos ratos que
detetados, fugiam em várias direcções para os seus aposentos-buracos/tocas-
A casa
de banho da Escola, era um cubículo de madeira, com uma porta chiadeira onde
havia um buraco redondo adaptado para as descargas dos excrementos.
Naturalmente, o cheiro espalhava-se pela escola, num ambiente ecologicamente
pouco agradável mas, era o que havia! Estavamos nos inícios da “pégada
ecológica,” tão badalada nos dias de hoje…
No final das aulas, os professores percorriam
a pé, desde Asnela a Cabeceiras de Basto, uns longos treze quilómetros, debaixo
de calor, chuva, nevoeiro, geada intensa, frio e de outras intempéries
brindadas pelos deuses do Olimpo, nem sempre afáveis…
O Conselho Escolar realizava-se, mensalmente,
em Leiradas e lá iam os inditosos e
alegres professores por montes e vales até
uma outra escola, sempre a pé, fintando as pedras e as poças de água…Nos dias
de chuva intensa, estes “aventureiros”
tinham de andar por cima dos muros, para fugirem às poças de água e aos
regueiros que nos brindavam com as suas cristalinas águas. Algumas pegas e
gaios do denso pinhal, testemunham essas
caminhadas destes dois ”bandeirantes”, que todos molhadinhos lá chegavam ao seu
destino onde uma colega, desterrada dos Açores, o esperavam para a reunião
semanal.
O Lima, com os seus conhecimentos de
pedagogia e metodologia e de didáctica fresquinhos, ia partilhando os seus
conhecimentos nos Conselhos Escolares vizinhos, sempre como convidado de outros
professores que “respiravam “ares de aposentação”. Era uma nova “aragem de
mudança e de inovação pedagógica”, sempre bem recebida pelos colegas e apraz-me
registar as maravilhosas professoras que trabalharam com os colegas do Lima e do
Abreu, relembro-me as professoras Augusta Gonçalves, Luísa Queirós, Sameirinho,
Infantina, Ana Maria…
O Lima e o Abreu tinham uma casa alugada em
Asnela, por quinhentos escudos mensais mas, ficar lá, sem água e sem luz , não
era tarefa fácil de suportar já que estavam
justamente habituados, a melhores condições de vida em Esposende. O Lima, levou uma vela de
estearina, comprada na Casa Braga, que foi colocada na cabeceira da cama e,
como leitor militante e assíduo, releu umas páginas de um livro sobre pedagogia
Moderna, Edição Brasileira (Globo) e, no dia seguinte e, ao fim de meia hora, ardiam-lhe os olhos…
Numa segunda-feira, o Lima, confessou ao seu amigo Abreu:
-Não, nunca mais fico em
Asnela, porque ir para a cama às 8 horas da noite não dá, nem tão pouco há um
café neste lugar…Que saudades da Nélia, da Havaneza e da saudosa Primorosa ! Se
houvesse uma tasca como a da Nazaré ou do Barrigana, como em Esposende, sempre
dava para comer uma sande de chouriço ou de marmelada, desabafou o Lima para o
seu amigo Zé Pilar, cujo pensamento estava em horizontes siderais….
À povoação de Asnela, o
padeiro vinha um ou dois dias por semana e não existia qualquer mercearia ou
mesmo “tasco” para se beber um simples café ou pingo.
Diariamente, estes dois
“caminhantes” percorriam 6,5 kms para cada lado até chegar ao destino, Escola
de Asnela e quando chegavam à Pensão estavam mais mortos que vivos…Por vezes,
apanhavam uma boleia num carro de bois ou num camião da EDP que, na altura,
estava a instalar postos para a eletrificação da Aldeia e lá vinha o Lima,
sentado nos postos de madeira, com o “rabo” massacrado pelos solavancos, enrolado
no emaranhado dos fios de eletricidade e as ferramentas dispersas nas traseiras
do camião saltitavam como gafanhotos”tontos”. O amigo Zé também era um dos “clientes” dessas inopinadas e bem-vindas boleias , sempre eram uns quilómetros poupados a pé…
O professor Artur, Delegado
Escolar de Cabeceiras de Basto, pessoa gentil, sempre compreensivo e de uma extrema cortesia tinha
informado os professores que iam construir uma escola nova que estaria pronta no
final do ano letivo e aquilo parecia um milagre mas, infelizmente, já não seria
para o tempo destes dois esposendenses!...
A Escola Primária foi
construída, equipada com mobiliário moderno - mesas, cadeiras e armários- e no
final de maio estava prestes a ser inaugurada…
O professor Abreu estava de
atestado médico e o Lima pensava para os seus “anjos da mente”:
- Uma escola nova e eu a dar
aulas numa escola velha, não pode ser!..
Ganhou coragem, respirou
fundo, pediu as chaves a um trabalhador responsável pela construção da escola e
tomou uma ação revolucionária: Pegou nos seus alunos e enfiou-se na Escola nova
depois de limpar o imenso pó que havia nas mesas e teve mesmo que exterminar
centenas de moscas com um pano do pó, comprado na Feira de S. Miguel, porque
“mata-moscas” era um recurso tecnológico que não existia na altura…
O professor Lima trabalhou “clandestinamente”
na nova escola e os alunos “viveram” momentos aprazíveis com aquelas condições
com o equipamento escolar novo, apenas a “Caixa
Métrica Escolar” cheirava a bolor, da muita humidade que acolheu no “seu
ventre”.
Quando o Lima ia à Delegação Escolar falar com
o professor Artur, este Delegado muito atenciosamente dizia-lhe:
- Colega, para o próximo ano escolar, vamos inaugurar a nova Escola e
bem merece, assim como os seus alunos, e terá outras condições de trabalho! O
Lima, fazendo-se de ignorante e cúmplice, ouviu com atenção esta informação
muito estimulante e mal ele sabia que este professor já tinha inaugurado a
Escolinha…
Ainda hoje, o Lima não sabe,
se o professor Artur sabia desta ação revolucionária e se soube, fez bem
calar-se…
Os professores Lima e Abreu, nesta aldeia de
Asnela, foram extraordinariamente bem recebidos e ajudados pela população,
especialmente pelo senhor João e sua esposa D. Celeste Moita que fizeram das
“tripas coração” para ajudar esta dupla de professores, oferecendo –lhes hortaliça,
leguminosas, batatas, cenouras, carne de
porco e mesmo garrafões de vinho que ,
naturalmente, se estragavam – e a “lezíria do vinho testemunhava isso mesmo…-
já que estes professores bebiam mais água que álcool, nas raríssimas vezes que
almoçavam na casa desta recôndita
Asnela. Como “parecia mal” não aceitar
estas ofertas, lá teríamos que receber
estas lembranças, evitando a ”mancha
da descortesia”!...
Um dia, chegou a informação à Escola que o
Inspetor ia fazer uma visita de inspecção, já em pleno inverno, e de facto, foi
mesmo mas, não chegou a alcançar a
Escola porque o seu carro ficou atolado
de lama no estradão de Asnela e conseguiu, com esforço, fazer a marcha atrás e
não teve, futuramente, mais “apetite” em fazer novas inspeções ao trabalho dos professores…
Em Asnela, terra verdejante
e e pacata, estes dois professores, já “calejados em resiliência”, permaneceram
vinculados a esta Escola, até ao dia 30 de Setembro de 1980, depois do
professor Lima ter feito uma curtíssima” Comissão de Serviço” na Escola de
Teixugueiras em 1979.
Asnela, uma aldeia que ficou
no coração destes dois jovens – na altura…-professores, apesar das péssimas e
desumanas condições de trabalho aqui
descritas contudo, aquela maravilhosa população, tornou a vida mais fácil a
estes dois docentes que acabaram de fazer mais uma “Comissão de Serviço” em ambiente de paz, após terem vindo das ex-colónias de Angola e
da Guiné, em ambientes de guerra.
Da “Escola da Guerra”, a que foram obrigados a frequentar, passaram
para a “Escola da Paz” ,
semeada com aquilo de que constitui o
melhor do mundo, que são as CRIANÇAS…
Nota:
Podem acreditar, nesta
descrição que é genuinamente verdadeira porque eu, Carlos M. de Lima Barros e o
meu amigo, José Abreu do Pilar, passamos
por esta experiência e hoje desfrutamos de uma merecida aposentação, como muitos
dos nossos colegas.
Texto dedicado ao professor Artur, já falecido, Delegado
Escolar de Cabeceiras de Basto, e a todos os professores que trabalharam com
ele na Delegação Escolar.
Uma palavra de apreço para a
Autarquia de Cabeceiras de Basto pelo
apoio dado na construção da nova Escola.
Carlos Manuel de Lima Barros
Esposende, 26 de Janeiro de
2021
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