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domingo, 30 de novembro de 2014

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR por Carlos Barros

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR
por Carlos Barros

Os figos voadores…
  Tinha começado o ano escolar na Escola Primária de Esposende, no ano de mil novecentos e cinquenta e nove, e a criançada deixara, com custo, a ribeira,  preparando o escasso material escolar, para o colocar na pasta,  bolsa de linhagem ou de ganga roçada, feita de algumas calças velhas, já rotas…
  Do sul, partiram os “nómadas” à solta comandados pelo Tone Paquete, Dimas, Milo, Quim Travassos, em direcção à escola.  Alguns com a lousa partida e meio “ferrão”, debaixo do braço, com  dois livros esfarrapados emprestados pelos meninos “fidalgos”, os alunos lá partiram, desanimados, para as salas de aula da Escola Primária, onde os Professores, Carlos Martins, Agostinho, D. Loca, Miquinhas  Beirão e D. Isolina, os esperavam, em turmas de trinta e cinco a quarenta alunos.
  No dia anterior, um grupo de ribeirenses tinham ido ao Zão, assaltar as uvas “col. de galo” sob o comando do Tarrio e do Carlos Bicho que andava à caça às “flauzinhas” com uma afunga feita pelo Melrinho.
  As aulas decorreram ao longo do ano, com muitas peripécias, aventuras, brincadeiras, corridas, jogos, fugas à escola, assaltos aos pomares, guerras norte-sul,  sessões de pancadaria e outros desmandos, próprios das crianças da ribeira que, apesar de tudo, raramente se zangavam mas a rivalidade entre as “zonas de influência” eternizaram-se ao longo dos anos.
   O final do ano estava a chegar e o Paulo Beirão, no último dia de aulas,  entrou na sala e deu um presente ao professor Agostinho, por sinal, seu tio,  precisamente uma cesta de figos deliciosos, comprados no António do Sul,  perante  os olhares dos outros amigos que nada tinham para dar a não ser irreverência….
   O Tone Paquete em plena aula, esfomeado, não tirava os olhos dos figos e disse para o Inês de Góios, seu colega da turma:
-Inês, ao intervalo aqueles figos vão levar “arda”…
  O que estás a dizer Tone, o professor se descobre mata-te desabafou o Inês inquietado.
  Na hora do intervalo, o Tone Paquete atrasou-se e deixou todos irem ao recreio e enfiou-se, sorrateiramente, na sala de aula com o Inês e encheram os bolsos de figos e foram para o quarto de banho comê-los apressadamente, porque não podia ficar nenhum no bolso, caso contrário,  uma revista na sala seria a “morte do artista”…
  O professor Agostinho entrou na sala e logo a seguir a restante “cambada”, e quando olhou para a ceira e viu que os figos tinham desaparecido, ficou doido!
  Quem comeu os meus figos, perguntou furiosamente o professor!
  Quem foi “o rato” que veio aqui?
  Inês, vai depressa chamar a D. Hortênsia para me trazer a santa luzia (palmatória) que hoje vamos ter “molho”…
  A empregada deixou a Cantina escolar e veio falar com o professor Agostinho que lhe perguntou se  tinha visto algum aluno entrar na sala de aula.
  Senhor professor, não vi nada porque estava com a Júlia a preparar  o almoço, e a distribuir  o pão amarelo pelas mesas, a arrumar o “leite em pó” e o queijo na dispensa.
  O silêncio na sala era absoluto com o Tone Paquete e o Inês a tremerem como “varas verdes”…
  O professor mandou pôr todos os alunos em fila e começou a revistá-los, um a um, com tom ameaçador e de cana ao alto…
  O Tone aproximou-se do ouvido do Inês, e disse  baixinho:
- Se o professor cheirar as nossas bocas estamos desgraçados e não nos “safamos”…
  Apesar dos esforços do professor, nenhum aluno foi incriminado, e a dupla Tone Paquete- Inês  passou incólume perante a justiça escolar, mas com muita sorte…
  O professor, olhando desalentado para a ceira dos poucos figos que restaram, recomeçou a aula, e deslocou-se para o estrado para “passar” duas contas de dividir com dois algarismos, dando, na passada, uma canada ao Tone que se estava a rir, mal o professor sabia que era por causa dos figos….
  Mal acabou a aula, os dois “mariolas” fugiram para a ribeira porque estavam apertadinhos e com dor na barriga, evitando os quartos de banho da escola, não fosse o professor descobrir pelo cheiro, o rasto dos figos…
  No meio das silvas, no meio da ribeira, e com amoras a “sorrirem” para eles, lá “descarregaram” a diarreia, aliviando um pouco a dor de barriga que se prolongou pela noite fora…
  O Tone da Paquete que residia numa simples e humilde  casa, perto da antiga cadeia, entrou esvoaçado pela esburacada porta de entrada, tropeçando no Dimas enquanto que a Cinda estava  junto às “trempes” a aquecer o caldo para o Senhor João, tio do Tone, e a fritar umas fanecas.
  Mãe, hoje não quero comer, pediu o Tone com ar enjoado, olhando de lado para o Dimas e a Cinda que estavam desconfiados.
  Na habitação não havia luz, apenas uns candeeiros a petróleo iluminavam aquele espaço habitacional, sem o mínimo de conforto.
  Tone, pediu a sua mãe, então pega nestas cinco croas e vai ao António do Sul comprar uns figuinhos para comeres  pois, o teu tio João teve uma boa maré..
  O quê mãe, não me fale em figos, nem quero vê-los, agarrando, com a mão direita, a barriga que continuava a doer…
  A tia Laura, mandou o Dimas à mercearia do António do Sul e numa louca correria, lá trouxe meio quilo de figos num “cartucho” de riscas vermelhas verticais e depois de estendidos numa mesa antiga, foram comidos com um pouco de broa, comprada na Rosália da Lucas, junto aos antigos Bombeiros, em frente do Senhor dos Aflitos.
  O Tone  foi dormir na cama de ferro, de colchão de colmo, com o pijama “cuecas ao léu”, estando a seu lado o Dimas que continuava embaralhado com a história dos figos.
 Irmão, quero dormir mas, não quero sonhar com figos, muito menos com  o maldito Paulo Beirão, confessou o Tone, fechando os olhos na esperança de acordar sem dores de barriga…


                         CURIOSIDADES
A raia tem sido um dos peixes mais pescados, desde o tempo da minha infância, pelos nossos pescadores de Esposende, sendo utilizadas  “rascas” , redes de malha larga e que eram postas em grandes caldeirões com água a ferver e com  cascas de sobreiros para endurecer o fio e as cordas. A tia Chora, minha vizinha, da ex- Rua General Roçadas nº 3, atualmente rua Arq. Ventura Terra  cozias as rascas no seu quintal num grande caldeirão aquecido com lenha das bouças e algumas pinhas.
Nas décadas de sessenta e setenta as peixeiras faziam as raias e a “miudagem” apanhava os fígados e outras vísceras para pescar à “chuncalhada” aos irões-enguias- na rampa do cais norte, em especial e, algumas vezes na do sul mas, aqui as lavadeiras ocupavam sempre a rampa  e os ensejos  em pescar eram escassos.

“Pescador de histórias”