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quarta-feira, 3 de agosto de 2022

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR por Carlos Barros

 

Ribeira de Esposende, espaço sagrado da minha infância… 

O verão, era a estação do ano, dos ribeirenses e as crianças do ” meu tempo”, saiam espavoridas, das soleiras das suas velhas casas e iam disparadas para a ribeira, descalças, ou calçadas com chancas, botas de borracha de avião, besuntadas com sebo do Talho do Júlio e do Jaime, da Rua Direita e o futebol esperava-as no ”relvado juncado e ensaibrado” da ribeira, onde a “erva  levava arda” com as pisadas que sofria, ao longo do ano.

 Na magia da ribeira, os dois selecionadores, Zé Feliz e João Café esperavam os atletas para o grande jogo que se avizinhava e as duas equipas eram logo  constituídas e a bola de capão do Zé Pancas, bem ensebada, estava debaixo do braço deste “rei dos Papeizinhos-cromos de futebol-“.

 Jogadores não faltavam e poder-se-ia  formar as equipas das reservas mas, o que interessava era jogar e os suplentes aplaudiam  ao lado das invisíveis marcações do campo da Faustina, o nosso Maracanã…Os atletas consagrados e “internacionais” vinham aquecidos de casa, nas correrias que faziam em direção à ribeira,  “bufando a sete foles” : Os  mais veteranos- Quim Tripas, Batista, Pompeu, “Sai Sai”, Luisinho, Romão, Saganito, Milo…-  andavam  em aventuras mais ousadas semeando “confusões” por onde passavam: assaltos à fruta, ataques ao canil do Matadouro, destruição de vidros, caçadas aos sardões e cobras na junqueira, para vender ao senhor Monteiro da farmácia, fugas à GNR,  ida aos ninhos, menos aos de poupas, ataque às cenouras e aos nabos, cortes dos rabos de “chicos” no matadouro Municipal e outras incursões aventureiras…Era a luta pela sobrevivência porque as famílias da época eram muito carenciadas.

Nas tardes solarengas, antes dos jogos,  alguns ribeirenses do Jardim ou da Central, ouviam atentamente as anedotas do Bocage, contadas pelo tio Encarnação e o seu carcomido cachimbo fumegava graças às “coriscas” apanhadas pela criançada, junto à paragem das camionetes do Linhares, junto à Misericórdia. Algumas vezes, aproveitava-se a “boleia” e com a ponta de um fósforo  das caixas ”3 Quinas,” os pneus das “caminhetas” eram  esvaziados e a fuga era a estratégia imediata…O tio Geraldo, responsável pelos Mictórios, junto à Câmara Municipal, geralmente, dormia nos bancos do jardim e não se apercebia destas “maroscas”

A “criançada do Norte” jogava mais no “Estádio do Salva Vidas”, disputas acesas entre tripulações das catraias ou das traineiras/motoras e aqui as vedetas espraivam  a sua classe : Com as equipas no terreno, o Zé Feliz, estava prestes a dar uma “assobiadela”, com o apito, que tinha saído, nos cromos comprados  na Casa do Pasto Marino ou na Loja da Locádia e o João Café, acompanhado do   seu irmão Paulo, afiava as “garras” estimulando, com gestos impetuosos, a sua equipa. O ambiente era  fervoroso e a assistência estava ansiosa pelo começo do jogo, com cariz a “tourada”…

 O Carlinhos, com a barriga bem apetrechada pois, tinha comido uma sande de marmelada dada pela Julinha Duarte, uma hora antes, respirava porte e pujança  física e tinha o privilégio de ter sandes suplentes, guardadas pela Sameirinha e Isabelinha Duarte, oferecidas pela prima  Etelvina, sem o Duarte saber!

O Manel Chora, o “Alma Negra” era o eterno suplente e apenas servia de “monte” porque não tinha habilidade para o futebol  e queixava-se sempre  que tinha de cozer as “rascas”  no caldeirão lá de casa e estava sempre ansioso  em regressar  para evitar umas “sostras no lombo”…

 O jogo tinha começado e a bola estava a rolar, sendo, como sempre , muito mal tratada sofrendo cortes nos “gomos”,  provocados pelas unhas afiadas de alguns jogadores descalços.

Foi um jogo com muitos golos, confusões, discussões, ameaças, tentativas de agressões, murros no ar, caneladas, gritarias, berros mas, no final pairava  uma paz que era mais fictícia que real…

No final do encontro, quase todos foram para as “escadinhas” dar os seus mergulhos, atacando, ao mesmo tempo, os sacos dos tremoços da Amália ou da Tia Aninhas  que estavam  a curar, com os irões a rabiarem por entre as pedras  “enlimadas e bodelhadas” ” do rio Cávado que, nessa altura, tinha águas cristalinas.

Jogavam-se algumas vezes, disputados encontros a “croa” e os vencedores sempre  amealhavam algum pecúleo para ver televisão aos domingos no tasco do Licínio/Torres na rua Nossa Senhora da Saúde ou mesmo para as entradas no Circo Torralvo ou no  Roma que se instalavam geralmente,  no Largo da Ciloca.

O Carlinhos e o Duarte, que moravam na ex-Rua General Roçadas, invejavam o equipamento completo  do Abel da Batata do Vasco da Gama,  recebido como prenda, do pai emigrado no Brasil, Aquelas chuteiras com pitões eram luxo na época e o Abel, sofria espalhanços quando escorregava na irregular calçada da rua e, numa das vezes, ia entrando pela montra da loja da Zitinha Losa….

A ribeira era deste modo,  o prazer de brincar, a ousada aventura, a alegria de viver, o correr, o cair, o “partir a cabeça”, as escoriações nas canelas, as perseguições, as corridas, o jogo dos ladrões e das nações, as guerras norte-sul, as flechas, as afungadas com godos redondinhos, as lutas das espadas , as corridas dos  barquinhos de cortiça e de cascas dos pinheiros com velas de jornais, os remates nas balizas nos varais, era o fugir à escola, o calcar rancoroso aos milhares dos pilados, em suma, a ribeira era o palco da nossa felicidade onde encontrávamos a liberdade que o regime da época ,  não nos facultava.

Crianças “duras como  ferro”, imunes às adversidades das doenças e uma ferida, era curada com “água areiada” das poças da ribeira, e as infeções fugiam de nós, a “sete pés”…As constipações não se aproximavam daquelas mirabolantes crianças que  nos jogos estavam  expostas ao frio, chuva e tempestades e parecia milagre….O Dr. Joel , “Médico do Povo”, HOMEM solidário e sempre  disponível, nem sempre tinha pacientes  oriundos da ribeira…

 Hoje, para premiar a narrativa real deste texto, irei sonhar, pelo menos irei tentar,  com a minha ribeira que me fez muito feliz e que me encantou tornando-me uma criança alegre e com permanentes sorrisos no seio dos meus amigos e da minha família.

 Nos dias de pesca, como pescador desportivo durante muitos anos, já em plena juventude, pescava, nas “coroas”,  aos “ mujos e erigos”,  com a minha “Boínha” e  lembrava-me sempre desta infância que tive a felicidade de desfrutar .

 

“O BÓIAS”

                                                                                     Esposende 26 de julho de 2022

Carlos Manuel de Lima Barros

 

 


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