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terça-feira, 12 de novembro de 2019

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR

 por Carlos Barros


As peixeiras de Esposende!
A roda do tempo, sempre em andamento ritmado, nem sempre constante, estacionou momentaneamente, nas décadas de sessenta e setenta, revivendo as peixeiras de Esposende, essas mulheres  heroínas  que trabalhavam estoicamente, vendendo o peixe nas suas gamelas, pelas portas, com os “pregões” a serem disparados das suas  gargantas ressequidas, em todas as direções.
As coloridas  rodilhas gastas pelo tempo, são testemunhas disso mesmo…
Algumas delas, autênticas maratonistas,  percorriam quilómetros infindos, até Gandra, Palmeira, Perelhal, Curvos, Forjães, Barcelos até à “longínqua  cidade de Braga.
Peixeiras como a Angelina Eiras, Antónia da Rodilha, A. Doninha, Silvana, Maria Pelada, Tina da Solha, Isabel Caveira, Maria da Batata, Inocência, Antónia e Dina da Galga, Inocência, Amélia Pichela, Maria Olívia, Tia Dores, Graça da Pequenina e tantas outras , “amigas do asfalto e das calçadas” do nosso concelho de Esposende, lutavam pela vida amealhando uns “tostões” para alimentar as suas  numerosas famílias.

No seu lesto caminhar, as peixeiras proferiam os “pregões”, cantarolavam “canções romantizadas”,  algumas delas tocadas pelo Conjunto Musical, chamado “Chanandola”, constituído pelo Mário Faísca, Quico do Rites, José Praia, que dominava a viola, e este trio musical, como curiosidade,  chegava a atuar em Circos-Torralvo, Mariano…- e nas Festas do da Vila. As canções preferidas e cantadas  por este “famoso” conjunto Musical, eram as do Roberto Carlos.
Elas vendiam fanecas, cações (canejas), sardinhas, cavalas, sardas, chicharros, peixes-rosas, tainhas, solhas, sáveis,  safios e um pano húmido encharcado com a  água do rio ou do mar,  cobria o pescado  para o refrescar porque nos dias de verão, o sol era impiedoso.
 As peixeiras de Esposende, mulheres de coragem, abnegadas trabalhadoras , viradas para a vida porque tinham de ganhar sustento para os seus filhos ,  trabalhavam em “terra, rio e mar”, consoante as necessidades de momento, chegavam mesmo, a ajudar os seus “homes” na varga e os barcos, no final da faina,  tinham o seu “ancoradouro” no cais da vargueira ou cais partido, como era designado entre os pescadores.
Com os seus calcanhares “gretados”- calcanhar rachado-de tanto andar, poupava-se o escasso calçado que existia, meros chinelos, socas geralmente  andavam  com os pés “ao léu”. As resistentes peixeiras,“ajoujadas” pelo peso do peixe, fisicamente não fraquejavam e, enquanto houvesse peixe  na gamela, não paravam…
 Passo uma breve citação, do escritor Raul Brandão, nascido na Freguesia da Foz do Douro, filho de humildes pescadores, que, no seu livro “Os Pescadores”(1867), visionava a nossa vila da seguinte maneira:
“Logo adiante é o areal africano da feia Esposende, terra da beira-mar, de onde não consigo ver o mar, terra de tristes pescadores”.
 Esposende de outrora,” não era privilégio da natureza” mas tinham os seus encantos, com as suas gentes, onde a pesca constituía uma das  actividades económicas mais  importantes para a sobrevivência dos pescadores. Esposende, era sim,  o “Privilégio da Natureza”, mas  no trabalho dos pescadores e peixeiras, mulheres valentes, laboriosas e a  sua beleza era traída pela dureza da vida que levavam : Raul Brandão   dizia que a mulher  poveira: “…a bem dizer , é um homem”. Feia e rude, pernas como trancas…Mas são mães extremosas e grandes parideiras de filhos para o mar…”
As mulheres de Esposende, eram bonitas e lutadoras, pernas desenhadas pelo deus “Eólo” e pintadas pelo deus Marte e, acima de tudo, eram  mães dedicadas aos filhos e exímias a fabricar a “prole”…Para mim, eram as “Vénus do Cávado”…
O pescador ia para o mar, único campo de lavra, arriscando a vida  e a mulher, ficava sozinha em casa, numa noite que não tinha fim e a “criançada” dormia numa cama, de colchão de colmo ou folhelho e com as travesseiras” cheias de “moínha”…A cama, era, por vezes, o habitat de seres vivos saltitantes com o corpo humano a servir de hospedeiro…
Na sua mente, invade o negrume da ansiedade, com a tragédia a bater à porta, anunciava o vento forte que se arremessava contra a velha porta de pinho,  com “voz de chiadeira”, desgastada  pelo bicho da madeira.
O mar espevitado, um mar cão que se fazia ouvir, num lancinante “urro” pela  vila anunciava um mau augúrio. As mulheres rezavam, apelando  à Nossa Senhora de Fátima ou Senhor dos Aflitos. Os trovões ecoavam no manto escuro da noite e os relâmpagos dilaceravam as nuvens negras, carregadas de chuva.
Um inesperado vendaval, cheirando a tufão, abanava as vidraças das janelas  e a mulher sofria, e tinha o anseio  do dia,  para esperar pelas catraias no cais norte, onde o Salva-Vidas estava de prevenção constante com o senhor Abílio e a tia Esmeralda despertados e atentos às más condições do tempo e do mar.
 As peixeiras de Esposende finalmente, com o tempo mais “domesticado” pelos deuses, iam para o cais e as catraias apareciam na barra, com os  corajosos e intrépidos pescadores, a remarem em direção à calmaria do rio Cávado, sempre solícito a recebê-los.
Quando chegavam, o peixe era “arrematado” pelo tio Sampaio, Tio João Careca e pelo tio Libânio e as peixeiras disputavam o melhor preço, barafustando, ameaçando, gesticulando, empurrando, gritando e , esporadicamente, puxando pelas roupas e cabelos, em momentos mais acesos… Parecia a Bolsa de Londres na disputa das Acões-peixe-…No final , todas ficavam  amigas e cada uma dirigia-se para os seus vários recantos da vila ou das aldeias , para vender os peixes. A lota desse tempo, era uma autêntica” peixarada”…Até os irões  e as caranguejas que dormitavam debaixo das pedras,  fugiam daquele alarido ensurdecedor!
A criançada, ficava no “jardim de infância” que era a ribeira, jogando futebol ou  nadando, no tempo quente, nas escadinhas, atacando os tremoços da Amália e da Tia Ana…
No inverno, os pescadores  tinham nas tabernas,-Bicheza, António do Sul, Lininha Patela, Barrigana, Lucas, Abílio Coutinho, Nazaré, Zezinha da Labrista …-  o seu centro de convívio, passando  tardes e manhãs , a beberem as suas tigelas ou malgas de vinho e as mulheres, de ancas largas e peitos sólidos, iam buscar os homens à taberna, algumas delas já idosas e deformadas pela vida, mas sempre  enérgicas nos seus olhares, e rumavam de regresso a casa, pouco acolhedora onde o frio marcava presença constante .
As mulheres, peixeiras de Esposende, sofriam como muitas do nosso País , e as da Nazaré, citando  Raul Brandão, confessavam: “o estupor da vida que eu levo, sempre molhada até aos ossos!...Juro pela rosa divina (o sol) que é verdade o que digo! Por causa destes homes! pelos sete filhos que criei aos meus peitos, dia  e noite naquela estrada!às vezes a
minha vontade era deitar-me no chão e nunca mais me erguer…Assim Deus me livre daquele leão sagrado ( o mar) …Morrer?diz vossemecê que é melhor morrer? Não! viver pelos netos, pelos homes e trabalhar até ao fim dos meus dias”. Dizia o escritor:
-“Valem mais que o homem, sacrificam-se mais que o homem…”
Era este o sentir da mulher Nazarena (Muitos pescadores de Esposende migraram para a Nazaré, com as suas traineiras e motoras, e o seu mar foi sustento, durante anos,   longe das suas  famílias e ainda hoje,  continuam a passar umas curtas férias, com a saudade de  outros tempos).
Este texto, é apenas um testemunho para homenagear as peixeiras de Esposende e as suas famílias num tempo, em que era difícil sobreviver onde nos seus lares, o pão não abundava,  sonhava-se com a televisão, rádio ou telefone, recursos de luxo que não estava ao alcance destas humildes famílias.
O Monumento ao Homem do Mar em Esposende, esculpido com artística  mestria pelos Irmãos Bom Pastor,  é um genuíno símbolo  do trabalho das mulheres e dos homens, peixeiras e pescadores, imbuídos num trabalho de osmose,  na luta pela sobrevivência, numa lutar incessante  com o belicoso  Mar e o manso rio….Constitui também, simbolicamente, o esforço das populações que do mar tiraram sustento e daqueles que construíram embarcações necessárias à faina marítima.
 O  Mar é Mar” é “ir e voltar” e , neste centenário do nascimento da poetisa Sophia de Mello Breyner, que escreveu um bonito poema sobre o Mar, porque não dedicar-lhe este texto!
 Ela também escreveu e semeou : “Poemas sobre Mulheres à beira-mar” e “Homens à beira-mar”.
                                                  
Esposende, 6 de novembro de 2019                    

                        “Pescador de histórias”
                                   (CMLB)