O missal de Natal…
Por Carlos Barros
O Carlinhos
era um menino da ribeira, corria, jogava futebol, andava às escondidas, jogava
aos “ladrões”, apanhava lagostas no matadouro, ia às pinhas mansas com o
Tarrio, assistia aos assaltos, liderados pelo Trabuqueta, aos quintais de
fruta, jogava ao pião, à bilharda
e à “forma” no largo dos peixinhos, pescava à boínha, com uma cana de pesca de
“nylon” comprada na cada Gazcidla-Samuel-
era , em suma, um ribeirense de gema, como os Gatinhos, Trabuqueta, Murracas,
Zé Conanas, Casimiro Triti, Arrebita, Galgas, Renato, Duarte, Piolho, assim como os mais velhos, o Quim Tripas, Batista, Pateiro,
Lucianinho, Miquelinos, Luizinho Soqueiro, Pompeu, Baiaca, Romão, entre muitos
outros.
Estávamos,
perto do Natal e o sonho do Carlinhos era ter um missal prático que se vendia,
entre outras livrarias, na Livraria
Nelita Editora-Porto, com o seu calendário litúrgico, e pediu ao Menino Jesus ,
o tão desejado missal, no seu sapatinho.
Todos os
domingos “a fio”, o Carlinhos com os seus 12 aninhos, ia em louca correria para a igreja da Matriz,
na hora da missa, para disputar a bandeja do peditório, tendo como adversários,
o Manata, o Manelzinho “Pipa” e o Manel Maria da Ritinha Padeira. Quem chegasse
primeiro à sacristia, com o sacristão Biomiro da Fura em sentinela, seria o
primeiro a levar a tão disputada bandeja. Era um prestígio, na altura, fazer o
peditório na missa , sempre alguém, olhava para nós, meros “zé ninguéns” da
ribeira!
Quem tinha um missal eram as pessoas ditas de
“posses” e o Carlinhos queria e fazia gosto ir para a missa, com aquele livrinho,
de capa plastificada preta, lombada vermelha e com aquela fitinha a marcar as
páginas por sinal, com 484 páginas.
Consultou o
missal que falava no Natal, na sua
Vigília, na oitava do Natal (1 de Janeiro), nos Evangelhos, nas Epístolas, nos Cânticos, Orações, Prefácios
mas, não falava do sapatinho para desespero
do Carlinhos…
Junto ao Altar-Mor, estava sempre, na sua
cadeira envernizada e aveludada, de tampo amovível, o senhor Marques Henriques,
já “entrado na idade”, e dava sempre a
sua esmola: deitava no prato 2$50 cinco croas- e pedia de troco, vinte e quatro
tostões…O Carlinhos quando estava de serviço ao peditório, ficava doente ao
chegar ao sr. Marques Henriques porque teria que dar os trocos e na Matemática,
não era grande craque mas, lá levava a “água ao seu moinho”…
Chegamos nas
vésperas de Natal, e pela tardinha o Carlinhos, com as suas irmãs Ló, Lena,
Liva, lá foi colocar o sapatinho, junto às trempes, da borralha, onde as
carochas, baratas e ratinhos, iam lá pernoitar, no quentinho, ainda com umas
achas e pinhas mal queimadas, fumegando
em direcção à chaminé
.
O Carlinhos,
imaginou que o sapatinho era pequeno para se meter lá o desejado missal e foi
pedir umas botas de água-galochas, enfeitadas com restos de nabiças, ao Tarrio
essas sim, tinham espaço suficiente para o dito missal e talvez uns chocolatinhos,
com pratinha, em forma de violas,
peixinhos, bolas, relógios e guardas-chuvas…
Depois da ceia de Natal, com batatas cozidas,
bacalhau, “tronchudas”, aletria e rabanadas , foi-se jogar ao rapa e o
Carlinhos “rapava” tudo, com a astúcia dos
seus dedos e os pinhões amontoavam-se
junto dele perante, o ar tristonho das irmãs que barafustavam e prometiam
mesmo, impugnar as rodadas...
A Jandirinha e
a avó materna do Carlinhos, Olívia
sempre presente, deu sinal de cama à
criançada, e todos se enfiaram no meio dos cobertores, comprados na
feira semanal de Esposende , a um “fala barato”, erepousaram as suas
cabecinhas, nas travesseiras endurecidas
com a palha de colmo e alguma moínha, lá metida, trazida de Vila Cova e da Gena
Panança de Góios, amiga da mãe do carlinhos.
Como
relógios despertadores, tínhamos as
pulgas que dormiam quentinhas na cama,
vivendo nos canaviais do colmo .
Chegada, a meia-noite, todos se levantaram e o
Carlinhos foi o último porque a
“suspense” tolheu os seus muscúlos, e
quando chegaram à lareira, todos levantaram o seu sapatinho, cheios de chocolates
e umas meias coloridas a estriar! O
Carlinhos, aproximou-se da galocha, altiva e dominadora, relativamente aos esburacados e descoloridos sapatinhos ,
espreitou para dentro e lá estava o missal, com uns chocolatinhos por cima. Foi
o delírio e pegou nele, colocou-o debaixo da travesseira, com medo que os ratos
o roessem!
No domingo, o
Carlinhos, de fatinho novo, com lacinho vermelho, às pintinhas, saiu de casa,
com o missal na mão, passou pela Câmara Municipal, onde o Franquelim da Neta e
os seus filhos Tita e “Quelim”, engraxavam os sapatos ao Fandino, Abilio Coutinho
e ao professor Agostinho, com o Dr. Regado,o
Samuel e o Américo Vieira, à
espera de vez.
Junto à igreja
Matriz, o Quim Codas, o Mário da Barrega, o Tonho, o Carlos da Arranca e Mouquinho olhavam para as frondosas árvores,
com as suas afungas, à espreita da passarada, com o Cuco e o Melro a
observarem.
Já dentro da
Igreja, o Carlinhos foi para junto do Altar – Mor, fazer figura e abriu o
missal, ao lado do Marques Henriques, em tom de desafiador. Abriu o missal
várias vezes, leu baixinho, sem soletrar,
a Carta de S. Paulo a Tito, o Evangelho de S. Lucas e o Prefácio do Natal mas, tantas páginas, logo desistiu e quase adormeceu sobre o
missal.
No regresso a casa, o Carlinhos pôs o missal
junto a uma redoma, com a crucificação
de Jesus Cristo, e foi para o quintal armar
ratoeiras, junto ao muro da Chora e da Lininha Patela, seus vizinhos.
A noite aproximou-se e o Carlinhos foi dormir, sempre a pensar no
seu missal, que tanto o adorava, mais fechado que aberto…
No dia
seguinte, pelas 10 horas da manhã, bateram à porta, com o pesado e ferrugento batente e o Carlinhos foi
abrir, aparecendo o Biomiro da Fura, o sacristão
da Igreja , a pedir ao Carlinhos que a
mãe pagasse ao Monsenhor, o missal que a mãe lhe tinha comprado.
-O quê, senhor
Biomiro, o menino Jesus é que me deu o Missal no sapatinho e se quer apresentar a conta, vá ter com o
Menino Jesus para lhe pagar!
Vá corra já atrás dele, que ainda está na Igreja antes que ele fuja…
Nota:
Está aqui a
meu lado, muito fechadinho e quase novo,
o dito missal, do Padre Mário Salgueirinho, 3ª Edição, da Livraria Nelita Editora – Porto.
Porto, 13 de
novembro de 1962
Dr. Armindo
Lopes Coelho
Desenhos de
Zulmiro de Carvalho
Tipografia do
Carvalhido – Porto
#5.000
exemplares
Esposende 25
de Dezembro de 2018