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domingo, 3 de junho de 2018

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR - Por Carlos Barros


A mula desaparecida….
 
O verão, nos  finais da década de sessenta,  entrou com todo o seu esplendor na então vila de Esposende, numa  segunda feira , dia de feira semanal, que estava instalada no Largo Rodrigues Sampaio, estendendo-se pela ribeira onde um camião repleto de cobertores, lençóis e outros artigos, acabava de chegar, junto aos varais,  com o vendedor a exercitar a garganta para rematar os produtos  vendidos ao desbarato, com ofertas aliciantes embora de qualidade suspeita!: “levem dois cobertores, que ofereço um guarda-chuvas”, leiloava o vendedor com toda a sua energia “gargantal”…
   O gado espalhava-se pela ribeira, sendo negociado e vendido, com os maços de nota a saírem dos bolsos dos “pastores” dessa época…
   As feiras quinzenais enchiam-se de “gentes” que compravam  um grande manancial de produtos: fazendas, colchetes, rendas, lençóis, samarras, sapatos, socos, chancas, fervedores, panelas de aluminio e de ferro, regadores, louças…

    Na barraca/tenda da jandirinha, amontoavam-se os clientes  habituais de Góios , Palmeira e Marinhas, adquirindo metros de tecido- flanelas, popelines, gangas, setim,…- ou outras miudezas -colchetes, alfinetes, “espiguilha”, agulhas- e as algibeiras enchiam-se de notas de vinte escudos e de cinquenta mas, as moedas proliferavam, dentro da rendilhada e colorida algibeira da Jandirinha, feita na sua velha máquina Singer ou na  lustrosa Oliva, comprava ao senhor Porfírio Gomes-, representante dessa marca…
   Em piquete, esperavam pelo final da feira, os varredores da Câmara: Daniel (Daniel Rodrigues Santamarinha), Zé da Vila (José Rodrigues Ferreira) e o Domingos de Gemeses (Domingos Oliveira Monteiro) que “conduziam” os seus carrinhos, sempre com as vassouras em acção. No camião, um velho Toyota, o António Morgado, recolhia o lixo que era depositado num terreno, onde hoje se localiza o Modelo/Continente, estávamos no ano de 1968.
   No armazém/mercearia/tasco do Abilio Coutinho começava a azáfama, com um movimento frenético, com os lavradores a venderem os seus feijões (mistura, apatalado, riscado, moleiro, branco, vermelho…), milho que eram ensacados para mais, tarde, serem transportados para Famalicão nos camiões do Cibrão.
    Esses sacos, eram levados  para os camiões, por duas pessoas,  usando as forças dos seus braços e o Abilio Coutinho, tinha sempre ajudantes à mão (Ilhoca, Rogério, Tio Alfredo da Mouca, Zé da Lucas,  Pesinho…) que a troco de duas malgas de vinho, faziam esse serviço todos entusiasmados.
  O Lourenço, esse, com os seus óculos “híper-graduados” apenas, dava orientações porque trabalhar, não era com ele….Apenas fazia recados, levando encomendas para as farmácias Monteiro e Gomes e, algumas vezes, para a Nélia-jornais…- recebendo a sua gorjeta da ordem cinco croas – e uma tigela de sopa da Tia Alice.
   Às segundas-feiras, sem feira, vinham as moleiras da Abelheira com as sua mulas trazendo a farinha para a loja do Coutinho que em troca, dava-lhe o milho para posterior moagem. Essa mesma farinha era vendida na loja ao quilo, em  cartuchos, para fazer sopa ou mesmo pão e a Padaria da Lucas, sita ao lado dos Bombeiros antigos, era uma das clientes do Abilio Coutinho.
   O Carlinhos à porta da loja, esperava pelas moleiras Tila, Maria, Eva e o  impávido Álvaro dos “mil homes” que desciam, por um estradão irregular e escorregadio, ladeado de amieiros,  da Abelheira com os muares, carregados de farinha  para descarregar  à porta do Coutinho.
   Na vizinha Delegação Marítima, o agente e “bonacheirão” Lázaro apreciava o descarregamento da farinha e o cansaço dos animais…
   Chegadas ao armazém, as moleiras  prendiam as mulas, numas argolas de ferro, fixas  na parede, desapertavam o “arrocho” da “solha (longa  tira de cabedal que apertava os sacos) e a farinha era metida no armazém/mercearia,  numas caixas de madeira, onde os corrimões esperavam entrar em acção….
   Descarregada a farinha, carregava-se o milho para nova moagem e as desgraçadas mulas, lá iam outra vez, sobrecarregadas, para os moinhos e azenha do moleiro Sebastião na Abelheira.
   Num desses dias, a moleira foi levar a farinha ao Vila Verde, loja/armazém no sul de Esposende e prendeu a burra  com uma grossa corda, a uma argola, incrustada na parede  desse estabelecimento. O Zé da V. encontrou o momento ideal para atuar e desatou o muar e levou-o para o antigo mercado municipal de Esposende,  nas vizinhanças do Marino, ensaiando mais uma das suas peripécias de malandrice. A Eva, moleira experiente, ao sair  da loja não viu a sua mula e entrou em desespero e quase em pânico, com o Zé da V., junto à mercearia do Francisco Areias, a observar os acontecimentos…
   Eva, o que te aconteceu, perguntou o Zé da V. com um ar naturalmente manhoso, mas discreto….
  “Olhe”, levaram-me a minha rica moleirinha e dava cinco croas a quem a encontrasse, prometeu a preocupada moleira, com um semblante pesado.
  Ò mulher, eu vou procurá-la porque desconfio que um lavrador de Góios ia em cima dela, perto da Havaneza….
  Prometo-lhe cinco croas se a trazer aqui, prometeu a Eva ao Zé da V.
  O Zé da V., em grandes passadas, mandou esperar a Eva, junto à carunchosa porta do armazém do Vila Verde, e foi ao mercado buscar a mula que comia umas couves e uns grelos amarelos  deixados pelas lavradeiras das Marinhas.
  Passados, uns minutos, lá veio o Zé da V., com a mula, com o arroxo pendurado, na albarda, e entregou o animal ao seu legítimo dono, recebendo as cinco croas de alvíssaras e já na posse do ”vil metal”, foi em grande correria para o Marino, beber umas malgas com o Daniel que já sabia da malandrice do Zé da V., um astuto  estratega a beber umas tigelas à custa da ingenuidade de algumas pessoas das nossas  aldeias (freguesias).
   A Eva lá contou a história aos irmãos na Abelheira, elogiando a coragem e a esperteza do Zé da V. que ficou a ser um ídolo para a moleira porque seria impensável chegar ao moinho sem mula…

Esposende, 17 de Janeiro de 2017

(Entrevistas com a  Eva –Abelheira- , António Morgado-Gandra-, Lurdes Miquelino, entre outros entrevistados

“Pescador de histórias”