As motoras/traineiras de Esposende:
Esposende, não
há muito tempo, teve várias motoras e traineiras onde os pescadores exerciam a
sua atividade piscatória e ganhavam o “pão nosso de cada dia”, tendo que
enfrentar, corajosamente, as agruras do mar e as intempéries rigorosas, perante
uma barra sempre traiçoeira e extremamente perigosa.
“O beijo da vida…”
Estava uma manhã serena, com uma névoa
marítima a refrescar os corpos da tripulação da motora Filomena Antonieta,
propriedade do Mestre João Careca – João Pinto Loureiro- e esta embarcação,
depois de entrar a “toda a carga” no
mar, serpenteando-se ao largo da restinga,
lançou-se à pesca de arrasto, do
camarão, ao longo da costa.
Estavamos em
pleno Verão, onde o sol ainda “ressonava”…
A tripulação da Filomena Antonieta,
constituída pelos esposendenses Rodolfo “Ilhoca”-Rodolfo Eiras Afonso Neto-, que
ia destemidamente ao leme, Tone Pirata, Chico-irmão do João Careca-, “Sai Sai”
– Anselmo Saganito-, Augusto Sancho, Alfredo “Morrossol”, Milo-Emílio Lima- e o
Mestre João Careca, pescador experiente e respeitável, velho “Lobo do Mar”,
lançou as suas redes de arrasto, ao longo da costa, esperançosos numa boa
pescaria de camarão que, possivelmente,
seria vendido à Teresa do Castelo, comerciante dinâmica e simpática mas, uma
mulher de “armas”, uma “expert” a comercializar o marisco – lagosta, lavagantes,
sapateiras, “caranguejas”,
camarão…-pescado nas águas marítimas, a poucas milhas da nossa orla
marítima...
A motora, em plena atividade piscatória, lá
ia na sua atividade de arraso, com as “portinholas” beijando o fundo do
mar, “recebendo no seu “regaço” o
marisco e eis que o sempre brincalhão Milo,
ilusionista “de profissão”, dirigiu-se ao “Ilhoca” e pergunta-lhe:
- Vamos fazer
uma aposta “Ilhoca”?
O que é que
queres, já me vais lixar , “Calhalho”,
disse gaguejando o “Ilhoca”….
Olha,
vou engolir aquele linguado que está no convés !...
Queres
apostar duas malgas no barrigana ou no
Abílio Coutinho, desafiou o Milo ao seu
parceiro de barco.
O “Ilhoca”
curioso, colocou a boina para trás, ” arregaçou “ os olhos, deixou o gigão que tinha nas mãos e disse-lhe:
-“Nem és homem
nem és nada”, se não fizeres isso, mas olha bem, as malgas de vinho não aposto
porque tu só podes é beber pirolitos ou laranjada, respondeu, com o seu
sotaque o “Ilhoca”….
O Milo pega no linguado, perante os olhares
dos amigos e mete-o pelo “garganil “
abaixo mas, desgraçadamente, o peixe não
deslizou e ficou encravado na garganta do aflito Milo.
Aí que vou morrer, gritava o Milo, já a ficar
negro, como carvão…
Vai buscar
um anzol do congro, gritou o Chico ao Sancho e ao “Sai Sai” que estavam mais
perto!
O “Morrassol”
e o Tone Pirata já rezavam ao Nosso Senhor dos Aflitos e à Nossa Senhora da
Saúde pela saúde do Milo, cada vez, de
rosto mais branco como a cal.
O Milo já estava a “espernear”, com falta de ar” e, num gesto
fulminante, o Chico encostou a
boca à do Milo, e com os seus poderosos
dentes, crava-os no rabo do linguado e retira-o da boca do desesperado e
amarelado Milo que ficou com a boca ensanguentada porque os seus lábios ou ”beiças”, como dizia o Sancho, foram lixados pela rugosa pele do linguado areeiro.
Após breves
minutos, já restabelecido, o Milo abraçou-se ao Chico e, com voz trémula,
disse-lhe:
- Irmão, salvaste-me a pele e já estava no “outro
mundo” se não fosses tu, meu irmãozinho!...
O Chico e o
seu irmão João Careca, que assistiu muito aflito ao “salvamento” do
Milo, ficaram descansados ao ver o Milo a respirar e aos “pinotes” de
contentamento.
Maria
Antonieta, depois de recolher as redes
com uma boa pescaria, regressou ao cais Norte de Esposende, atracando
nas calmas águas do Cávado, onde algumas peixeiras e a Teresa do Castelo,
impondo a sua compleição física e empurrando-as para o lado, esperavam pelo pescado.
Comprada toda a “mariscada”, a Teresa
dirijia-se à loja do Coutinho, onde o Carlinhos da Jandira, pesava todo o
marisco, inclusive, grandes lavagantes e lagostas na balança de pratos que
reluziam, depois de serem lavados, com areia e limão, pela Glorinha e pelo
Carlinhos, nas horas vagas.
Como recompensa, a Teresa oferecia um pequeno
lavagante ao Carlinhos que a sua Tia Alice cozia numa panela, sendo logo
ingerido, acompanhado com um bom traçado-vinho com gasosa- e um sumol que o
Carlinhos bebia, deixando, um “fundinho” no copo para saborear com o caldo de
feijão com “troços”.
A Maria Antonieta, comprada pelo sr. João
Careca por quarenta contos, (e com anzóis ,como afirmou…) a um guarda-fios, que
se tinha tornado pescador, acostou ao longo do paredão, sendo segura pelas
fortes “amarras” às argolas, junto às escadinhas, onde “se curavam” os tremoços
da M. Amália-famosa tremoceira- e da Tia Aninhas.
Toda a
tripulação, depois de lavar todo o convés do barco e do porão, veio para terra,
para descansar por umas horas, todavia
foram “assinar o ponto”, comandados pelo Tone Pirata, Ilhoca e “Morrassol”, ao
Barrigana, outros porém, dirigiram-se à Lucas e ao Coutinho, para provarem o saboroso vinho do Tio Firmino de Vila
Cova, que deixava marca nas malgas. Era um tintol de luxo, como dizia o Tio
Rogério e o Geno nas suas conversas na tasca/armazém do Coutinho, sentados nos
sacos de feijão e de milho …
O Pezinho,
cliente assíduo, do Coutinho, bebia uns “penaltis” valentes e a garganta nunca
secava…
O José da
Lucas, um “bebedor” sapiente e moderado, uma malguinha, no máximo duas,
dava-lhe para toda a tarde, e o aperitivo era falar e defender o Benfica,
acolitados pelo Rogério que só falava do Coluna que para ele, era o melhor jogador do Benfica, dizia-me ele nas
suas “vivas conversas”.
Nesses tempos, os pescadores de Esposende no inverno,
raramente iam ao mar, que estava quase sempre “virado ou picado” e conviviam,
naturalmente, nas Tascas, onde passavam as tardes, conversando e discutindo as
suas histórias, as suas ricas vivências, um património histórico/cultural que deveremos preservar, registando-as e
divulgando-as.
Carlos Manuel de Lima Barros
Nota:
Esta
história é verídica e foi-me contada e recontada pelo Emílio Lima- Milo-, Francisco
Loureiro- -Chico-, João Pinto
Loureiro- João Careca- e teve como
palco, a motora Filomena Antonieta, no
longínquo ano de 1967.
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