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terça-feira, 25 de agosto de 2009

Minha rua… meu mundo -MAX

MAX

A filha tinha chegado de um passeio de finalistas a Paris.
Vinha eufórica, extasiada, como que queria contar tudo de supetão enquanto esperava pelo saco de viagem, algures perdido na confusão dos restantes na bagageira do autocarro. Finalmente, lá apareceu.
Beijos e abraços de boas vindas entre filhos, pais e avós, mais parecia uma romaria, mesmo que o santo de ocasião nem beato fosse, aliás, vinham cheios de catedrais e outras coisas tais.
- Pai, digo-te uma coisa, fiquei bué de contente. Nunca tinha visto uma cidade tão grande e com tanto de bonito e grandioso. Adorei Notre Dame, a Torre Eiffel, mas o que mais me encheu foi a Disneylândia. Sabes que esperamos quase três horas na fila só para entrar?
A viagem até casa foi rápida mas os irmãos logo atacaram:
- Trouxeste-me aquilo que te pedi? – Perguntou-lhe a irmãzita mais nova.
- Esperai até verdes. Há recordações para todos.
Já em casa, naquele final de tarde e até quase à meia-noite, foi o desembrulhar de prendas e prendinhas, à mistura com a descrição pormenorizada do filme do passeio.
(…)
Alex reviu-se na filha e no tempo após dar-se conta que o seu relógio tinha parado.
Recuou-se na memória.
Na escola primária da vila, os Passeios/Visitas de Estudo eram quase uma raridade e só nos finais da Quarta Classe. Eram ali à Penha ou ao Castelo de Guimarães, ao Bom Jesus ou Sameiro, lá para Braga, à Santa Luzia, em Viana, e mais distante, para os lados do Porto ou arredores pois havia que chegar a horas, em estradas únicas e sem alternativas pois se fazia filas havia que desesperar. E seria uma sorte ir todos da classe pois os míseros escudos para as camionetas do “Linhares” ou da “Viúva” tinham que ser poupados, tostão a tostão, desde o Natal. Alguma subscrição entre todos, ou o mecenato da professora, lá fazia com que os mais necessitados também pudessem conhecer outros Esposendes maiores que a sua terrinha que, para a maioria, era ali que começava e acabava o seu pequeno mundo.
Mas, fora isso, e estes pequenos extras, a prendarem um exame quase impecável de Quarta Classe - que obrigava a decorar os cursos de todos os rios, caminhos de ferro, Geografia e História de Portugal, fora os problemas, os cubos e os trapézios, os hectolitros e as rasas, mais ainda as lições com frases cheias de curvas e de Moral do “Livro da Quarta Classe”, e sei lá que coisas mais… - brincadeiras de criança não faltavam na sua rua.
Aliás, o seu pequeno mundo passava-se ali, fora dos tempos da escola.
Na vila de então, onde todos se conheciam, os apelidos eram mais que muitos numa simbiose de “matrículas” associadas que quase seria preciso notário especializado para se lhes chegar à origem.
Havia um rol de “etiquetas” para toda a gente e até o carteiro guiava-se por tal “código” onomástico.
Aquela rua era na sua imaginação de criança, muito superior a toda a Disneylândia das Franças e arredores. Aqui, toda a gente falava a mesma língua e toda a criançada brincava às mesmas brincadeiras. Então nas tardes de Verão aquilo virava Feira Medieval, à mistura com jogos circences, cantigas de “amigo” e algumas de “maldizer”, sobretudo quando à nicada, o peão, estreadinho de ser comprado no António da Leocádia da esquina, ficava guilhotinado pelos carrascos dos compinchas. Mas, de ser homem, até as lágrimas se lhe secavam ao sair.
Mais além, era o jogo do botão com as cacholas a dominarem. Havia a “banca” de botões pois cinco de quatro buraquinhos minúsculos das camisas de noite das mães - quem as tinha, porca miséria? - custavam, no “câmbio negro”, um tostão!
Aqui, as moças disputavam, na corda, a perícia das entradas, saltitando a solo ou aos pares, fazendo esvoaçar os vestidos que pudicamente aconchegavam. Outras jogavam ao “Reloginho” e à “Macaca” desenhado o chão, a lembrar Cristo, na forma dos ponteiros do relógio, ou em cruz, e pulando os respectivos quadrados com um ou os dois pés.
- Pisaste. Perdeste! – Arbitrou a Licas e ao mesmo tempo concorrente na brincadeira.
- Num pisei nada, aldrabona. Viste, Taina?
E logo entrava ali uma política de interesses, de compadrios e de virar de olhos que funcionava em pleno.
No jogo da malha, “Made in próprio”, de ardósias bem torneadas e arredondadas pelos godos, disputava-se os três pontos de cada “mecada” mais a terminação do ponto de aproximação, até aos trinta. Malha de ferro era um luxo e só para os graúdos.
Mesmo à porta da “ti Caveira”, no jogo das latas, as bolas de meias velhas e farrapos faziam chinfrinar toda aquela latoada, que abalada na sua estrutura de Pisa desmoronava-se, assustando rafeiros e gatada que fugia a sete pés.
Pelo meio, e de caminho do fontanário, a Belinhas, nas suas quinze viçosas Primaveras, de rodilha à cabeça, equilibrava o seu cântaro de barro, salpicando água e olhares, pela pressa em chegar a casa, meio ruborizada pela choque do “Zé Tremedeiras”, o “peixarão” lá do sítio:
- Olá, “faneca”, queres vir na minha catraia?
- Vai tu, seu viscoso. Vai-te afogar…
- Não me importava nada de me afogar no teu cantarinho, amor…
- Ai é? …Só me sai pilado de rasca! ‘Inda há-de vir o lavagante que me há-de encantar, seu mexilhão das pedras!
- Só agora, rapariga? – Vociferou a mãe, em chegada à porta - P’ra quem é que estavas a falar?
- Foi nada, mãe.
Em redor, e aproveitando a pista calcetada de pequenas lascas de lousa, vergalhau e terra areada, “Joaquins Agostinhos” contornavam bancas e banqueiros, nas suas motas de pau com travões a condizer, aros de bicicletas ferrugentas abandonadas ou simples arcos de gancheta, exímios em ultrapassagens automáticas por derrapagens perigosas, derrubando “donas Brancas” de ocasião que, para bem de todos, dispensavam peritagem oficiosa da Guarda Republicana.
Outras sinfonias:
- Manelinho, oh Manelinho … (?) Onde raio te meteste, filho? – Clamava a tia “Chora” – Aliás, toda a gente era tratada por tios e primos, naquela rua.
Que Manelinho, qualquer Manelinho!... O rapaz era um figurão. Então não era que o nosso sabido já era um Ás na Bisca e no “Sete e meio”? Ali, a banca funcionava a dois tostões o montinho. E o seu investimento já ia na moedinha das caravelas dos dois e quinhentos! – Sabia lá a mãe do curso de “Economia” do seu doutor!
- Nosso menino, num bistes o meu Manelinho ? – Angustiava-se a progenitora com lágrima à espreita.
- Eu não, tia “Chora”. Deve estar ali pró S. João…- apontou-lhe o “Caixa d’óculos”.
Ainda num último encore:
- Ma…ne...lin…………….ho … (?) – Ecoou, em ressonância, rua fora, aquela voz bombardina, estremecendo os vidros alanhados da janela vizinha.
Nada de Manelinho!(?)
Do fim da rua, perto do fontanário do Norte, e num falsete que fazia ofuscar qualquer Pavaroti:
- Já vôoooooooooo…u mãe – E o Manelinho “ressuscitava” daquela assombrosa desaparição.
Perdeu meio investimento de um escudo, mais dois tostões da “cruz de Cristo” pois a banca sugou-lhe três apostas seguidas, ao montinho. E que azar: dois Reis e uma Dama fizeram vassalagem a uma Manilha, um Ás e um Valete de Copas do banqueiro “Zé Tamanco” - um veterano nas suas polainas de carpinteiro e nos seus treze anos de aprendiz, no Vila Verde, pelo manejo do pinho e do carvalho.
Meio triste, zarpou até casa, por medo do pai.
O ti Manel, furioso por tanta gritaria da mulher, levantou-se chateado e cozeu-se à ré da porta, enquanto palitava os dentes das espinhas do congro cozido.
Esperou.
Como lagostim em garapau, ao deambular porta dentro, Manelinho, viu-se entre as manápulas do pai:
- Anda cá, meu estupor, não ouviste a tua mãe?
Sem aguardar resposta, alapou-lhe, mesmo ali, três tabefes tão bem assentes que, ao último, o puto abanou, inclinou, e voou corredor fora aterrando na mesa da cozinha.
Fartou-se de chorar que até comoveu o gato “Bigodes”.
Finalmente, lá trincou a comida meia fria.
A Feira Franca continuava no auge.
Ao lado, nos muros dos Sant’Antónios de pedra do mestre Quintino, outras moças disputavam a chupila, nos botões, com uma algazarra tão sopranina que abafava até as baritonices dos rapazes, agora em jogos de força:
- Eu posso mais que tu, oh “Trinca Espinhas”. Anda, assai-te, badejo podre… (?)
Tais “crismas” ultrajantes na canalha tinham o condão de a espevitar para a “honra perdida”, desde que o arcipreste a baptizara de santos e santas, em Zés, Tónes, Joões e Teões ou Fátimas, Lurdes, Saúdes e Laidas e de outros nomes de beatos em lista de espera de altares.
Culminava sempre na dita desforra verbal ou luta “greco-romana”, logo ali e no lugar.
- E (as)saio-me, “Zé ranheta”. Anda … “Zé ranheta”
Assistia-se então à subida do pódio das hierarquias, perante júris tão avalizados que após minutos de engalfinhamentos, calças rotas e camisas desbotoadas e com arranhadelas à mistura, decidiam logo ali.
Até à próxima desforra.
Já depois do jantar.
- Tóne, dá-me uma bucha … (?) – Como que lhe apedrejavam a cara os olhos do “Sêmeas”.
Numa de “santa irmandade”, o amigo das cavalitas, arreganhando a tacha amarelada, lá distribuía uma mísera côdea de pão ao “Sêmeas” que, em paga, o convidava para o jogo das corridas, descalços - “até ao S. João e vir”. No dia seguinte, o “Sêmeas” pagava com juros, deixando o amigo dar duas trincas na sêmea -“irmã” comprada, a cinco tostões, na tia Lucas da igreja. Pura fraternidade aquela!
Em casa, o candeeiro a petróleo lampejava sombras fantasmagóricas no teto de barrotes enquanto a mãe se afadigava tentando enfiar a filharada toda na cama. Cinco numa tarimba e ainda mais o pequenito no leito dos pais.
Pela madrugada, o ronca do farol amedrontava de sonhos e nevoeirada o sono justo desta geração de pobres-ricos.
“Tão …tão…tão …” – Ia repicando, lá do alto, o sino da matriz nas badaladas das horas também elas a precisarem de merecido descanso.
Por fim, a noite agasalhava tudo e todos no seu manto de silêncio.
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