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terça-feira, 2 de junho de 2009

A lota - Max

MAX
Ali para os lados do Salva-Vidas, arrematava-se, alto e bom som, a última faina da faneca, acamada em gigas, e que se multiplicava no inclinado do cais. Em seu redor, o mestre da catraia, qual contra tenor de cantata, dava começo à sinfonia da lota, vociferando e inflacionando a pescaria, à boa maneira marroquina:
- Dá trinta mil réis …dá trinta mil réis …
Peixeiras experimentadas, enroladas de xailes pretos e socos a condizer ou descalças e pés calejados por tanto quilómetro batido às aldeias vizinhas de Gandra, Forjães, Vila-Chã e até Barcelos, ou charrete até Braga, acalentavam a cantilena do mestre Sampaio e iam inflacionando o preço com mais uns mil réis acima, logo contrariadas pelas mais endinheiradas que, em jogos de olhares, já tinham por garantido o peixe pois eram as que pagavam logo e na ocasião. Estas limitavam-se a esperar pelos últimos lances.
Umas, faziam alarde do seu poderio económico, visível nos seus brincos à vianeza, cordões e gargantilhas de ouro, ícones de uma viuvez bem sucedida pelo lucro nas partes dos tresmalhos e das catraias que os falecidos lhes deixaram por testamento. As outras, que tinham de fazer pela vida, ainda teriam que revender o peixe, alinhado nas gamelas, nas aldeias mais próximas de Fão, Marinhas, Castelo, fizesse sol ou chuva, para pagarem, à noite, ao mestre.
- Dá trinta mil réis …dá trinta mil réis – perante o silêncio, o Ti Sampaio parece chateado – Então, caralho, ninguém quer esta faneca vivinha da costa?
- Trinta e quinhentos – arrematou a Caravelha.
- Dá trinta e quinhentos, trinta e quinhentos, uma… trinta e quinhentos, duas…
- Trinta e sete – sibilou a Silvana.
- Porra, mulher – atacou a Ondina – p’ra que é tanta ganância, vais vendê-la toda em Gandra?
Riposta aquela:
- Olha, vai mais é à merda, o que é que tens com isso?
- Dá trinta e sete – alteava o Sampaio, alheio aos “elogios” entre as comadres – trinta e sete mil réis, uma … trinta e…
- ‘cárenta – destoou a voz da Torcata.
- Dá ‘cárenta mil réis …
- ‘cárenta e quinhentos – vociferou a Siloca.
- Gananciosa – atirou a Tina da Solha – mete-o entre as pernas … sua …
De imediato, aquilo pareceu dar bronca e sentia-se no ar que não ia acabar bem. Contidos os ânimos, atacou o velho lobo-do-mar:
- Dá c’árenta e quinhentos, uma… c’árenta e quinhentos, duas … – crescia a expectativa –, c’árenta e quinhentos, tr…
- ‘cárenta e seiscentos – fez subir voz desconhecida, o que provocou o espanto das peixeiras da terra.
- Queres ver esta – Murmurou a Ondina – são da Póvoa ou do Castelo?
- Dá c’árenta e seiscentos, uma … dá c’árenta e seiscentos, duas … dá c’árenta e seiscentos, três …(?). Rematado.
Seguiu-se o congro, a raia, o peixe-sapo, o peixe-rosa, o peixe-espada, o rodovalho, e por fim, os crustáceos: lagosta, arola, caranguejo, lavagante …
Noutros tempos, a cantilena era a mesma e, agora como então, também se esperava que arribassem ao cais as catraias dos Sr. dos Passos do mestre Feliz, da Nª. Sra. da Saúde do Calica, da Sra. Das Dores do Libra e do S. João da Barra do Torcato, entre outras. Gente de pescadores, que fazia ofício do mar, haveria de continuar a rematar a faina daquelas catraias puxadas à força de remos e da ajuda das velas, quando o vento estava de feição, ou dos menos endinheirados, com os seus barquitos com os quais um tossir mais forte do mar tanto luto trouxera a viúvas da terra.
A canalha já se habituara aos cognomes dos mestres e das peixeiras e quando se falava de Doninhas, Nazarés, Micas Catanas, Silocas, Adelaides, Marias e Chitas Batatas, Ti Anas Brancas, Marias Cachuchos, Isabéis Caveiras, Galgas e Pequeninas, entre outras, era sinónimo de respeito e quase a merecerem bustos de bronze, ali pró Sul ou Central, se houvera na ocasião comemorações e medalhas do 10 de Junho e os mil réis necessários para pô-los de pé. Sim, que de estátuas e figuras públicas a vila estava quase desnuda, não fora o poeta, para os lados da Câmara, e um tal de Rodrigues Sampaio, que, de tantas mudanças e rodriguinhos ainda hoje se pasma não ter sofrido um torcicolo.
Alex e os amigos do Norte subiram, vezes sem conta, o farolim do torreão da alfândega e toparam-lhe o gosto das alturas, tentando alcançar aquela luzinha vermelha, colocada bem lá no topo da escadaria de ferro e que, segundo ouvira a certos pescadores, servia de azimute, por alinhamento no mar alto, aos locais onde havia mais peixe. Das primeiras vezes, acagaçara-se todo naquela escalada pois, atrás de si e numa disputa do empurra à marrada, a fila dos amigalhaços forçava o do alto a arribar sempre ó p’ra cima daquela Eiffel que, em chegados, constituía a prova de fogo para ser aceite no grupo, com honras de guiness, se, entretanto, o Lázaro fiscal não os esperasse cá em baixo, para umas valentes bordoadas!...
Se a sineta tocava três vezes, era sinal de naufrágio e, então, o alto do farolim e o torreão do Salva-vidas do Ti Abílio eram disputados, ao binóculo, para alcançar o azimute da tragédia e calcular, a olho nu, as milhas que separavam os náufragos da terra. As aflições aconteciam, sobretudo, à saída e à entrada da barra, quando as catraias vinham carregadas e a maré as empurrasse para dentro ou para fora. Descia, então, o Salva-vidas dos seus trilhos ensebados pelas vísceras da peixaria que restara da lota anterior, sendo puxado, à força de remos, por homens que substituíam a tropa pelo serviço voluntário, pagando a correspondente taxa militar.
Umas vezes, a tragédia era suavizada pelo retorno dos homens, outras, a vila via aumentar o rol das viúvas, pelos familiares naufragados, e cujo único sustento era o próprio mar.
No terço da tarde, o velho arcipreste sarava as dores e desavenças de uns e outros pelo recontar das Ave Marias e Padres Nossos que desfilavam pelos dedos calejados desta gente que se mantinha unida pela fé e esperança em dias melhores.
Talvez que já amanhã, no milagre repetido de uma pesca milagrosa.

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