ESPOSENDE E O SEU CONCELHO


sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR - por Carlos Barros

Os porcos rabichos
  Estávamos numa sexta-feira, numa manhã cinzenta, nos inícios dos anos sessenta, com o nevoeiro a embaciar a bela paisagem do nosso Cávado, onde os barcos e as motoras desapareciam misteriosamente, dos nossos horizontes visuais, tal era o denso nevoeiro que se fazia sentir.
 As gaivotas pairavam no ar, pronunciando bom repasto esperando pelas tripas-entranhas- lavadas pelas mulheres do matadouro, junto aos “terrões” do rio..

  O portão do matadouro foi aberto pelo, funcionário camarário, Zé da Vila, muito cedinho e apenas o Valdemar estava encostado ao muro, com uma corpulenta vaca que olhava impavidamente para aquele sinistro local, mal ela sabia o destino que iria ter… O senhor Miranda- “Pastor”-, na companhia do Zé Fidó, estava a chegar com uma toura e um boi muito cornudo com uma longa barbela.
  Pelas oito horas da manhã, começou a entrar o gado para o abate e uma carrinha Bedford de caixa aberta, transportava alguns porcos mal cheirosos e muito ruidosos, grunhindo, quase que adivinhando o seu fim…. O Calisto de Curvos estava a chegar com a sua bicicleta, fazendo grande “chiadeira”, com um cesto atrás, para transporte das encomendas e alguma carne.
   O Zé Fidó chegava a ir a pé, a Viana do Castelo, Marinhas, Palmeira de Faro, Alvarães, Curvos, Vila Cova e outras freguesias transportando gado para o matadouro, percorrendo dezenas de quilómetros, durante muitas horas, para chegar às oito horas em ponto ao Matadouro Municipal de Esposende.
  Com o matadouro em “rebuliço”, durante a manhã, o gado foi sendo paulatinamente abatido pelas “choupas” do Jaime da Faustina, Álvaro Filomeno e filho, pelo Zé do Talho (Teresinhas), sangrado e de imediato esquartejado, com o Valdemar a desfazer as vacas para o Talho Catora e algumas ovelhas que, com o seu ar “angelical”, foram sendo abatidas,  numa ténue luta pela vida…
   Os veterinários dr. Gonçalves de Vila do Conde e, mais tarde, o dr. Moreira de Barcelos faziam a inspecção sanitária aos animais abatidos, os quais levavam um longo carimbo, em toda a carne, como garante do controlo sanitário do gado. O senhor Marquês era um dos responsáveis sanitários do matadouro e estava sempre vigilante embora, fizesse “vista grossa” a algumas situações…

  O Carlinhos da Jandira estava quase sempre presente às sextas-feiras ou segundas-feiras, e sob a cumplicidade e apoio do Zé da Vila, entrava no matadouro para segurar nas pernas dos bovinos, facilitando o trabalho do Valdemar e do Jaime ou mesmo do Zé Fidó, já que o seu desejo era receber a bexiga do animal para, depois de seca, ser utilizada de “cambra de ar” nas bolas de capão do Zé Pancas que possuía várias já que era o “rei dos papeizinhos-cromos- e das senhas da bola que era a garantia da bola de couro.
   Os porcos, presos num longo e negro banco, eram mortos depois do gado, queimados com colmo, esfregados com pedras pomes  e lavados com água  quente e sabão rosa e posteriormente desfeitos pelos talhantes: Zé Fidó,  Jaime…
   Aos longos dos anos, as mulheres - Ângela do Corcunda, Quinhas da Vindeirinha (mãe do Quim Tripas), R. Mujica, Maria  Picá- mulher do Russo-, Laura Ministra, Carma Ceareiro, Celina do Cocho) lavavam as tripas, -para as chouriças, “solas”,…- no rio  que depois eram cozidas em panelões na cozinha do matadouro com  o sangue dos animais e levavam um  pequeno “quinhão” para casa…
   João Louceiro com a sua carroça, auxiliado pelo Zé da Vila, Marquês e Artur Pessegueiro, recolhia e distribuía a carne do Matadouro pelos talhos de Esposende,  poupando combustível uma vez que  a égua estava sempre em boa forma física. Não precisavam da “Galp” apenas de uns fardos e palha e água para pôr a “viatura” a rolar…
   A Páscoa, o mês de Agosto e o Carnaval,  eram os períodos de maior actividade do matadouro onde o consumo da carne era maior.
   O Quim Tripas sempre rondou o Matadouro para as suas aventuras e  muitas pessoas estranhavam a presença deste ousado esposendense por estas paragens e a afunga-fisga- andava sempre ao pescoço, com os bolsos cheios de godos , as “balas” desse tempo…
    Durante muito tempo, os porcos mortos e já preparados apareciam sem rabo e o sangue desaparecia dos alguidares e este mistério permaneceu durante muito tempo.
    Interrogava-se o Álvaro do Talho:
- Como é possível os meus porcos aparecerem no meu Talho sem rabo?
O Jaime e o sr. Alfredo queixavam-se do mesmo mantendo-se preocupados já que muitos clientes  compravam este saboroso apêndice, todas as semanas.
  O Valdemar, gaguejando, disse ao Catora que desconfiava do Quim Tripas que não largava o matadouro…
  Vou ver se saio mais cedo daqui, para levar o meu Matateu (tourinho domesticado e amansado pelo Valdemar)  ao pasto no campo do Pirolau, avisava o Valdemar  acelerando o seu trabalho.
  O Zé Manel Catora afirmava que o Quim Tripas só vinha ao matadouro para nadar e dar uns mergulhos no “carreiro do rio” e para apanhar umas solhas ao pé, para levar para casa.
   O Zé da Vila que estava a ouvir a conversa, junto ao Carlinhos, com o Tone Duarte na espreita, olhou para o sr. Álvaro do Talho e numa resposta rápida, avançou com uma idéia:
   Na próxima vez, vou fazer uma emboscada e apanho o vadio que corta os rabos dos chicos…
   Por volta das treze horas da tarde, o Zé da Vila, estava escondido por detrás da porta do matadouro, lado poente e com o gado todo abatido esperou, esperou até que….
   Rastejando, pelo poente, apareceu o Quim Tripas, de calções de ganga, já muito “roçados” com uma faca enferrujada e pouco afiada, na mão,   aproximou-se do banco onde estava o porco e cortou o rabo, que ainda fumegava, pela “raíz”  e lançou-se em grande correria  só parando na  junqueira… O Zé da Vila, presenciando, esta situação e impotente em acompanhar a vertiginosa correria do Quim Tripas, entrou no matadouro, onde os seus  amigos marchantes estavam a “mudar de roupa” e a lavarem as mãos e  desabafou:
- Já sei quem é o “gandulo” que tem cortado os rabos aos nossos porcos!...
  Quem é, quem é, perguntaram em uníssono, os talhantes presentes….
É o Quim Tripas que nos tem “roubado” os rabos e até deixou cair um copo plástico que era para levar o sangue para beber mas, não teve tempo!
   Meu Deus, só poderia ser o Quim Tripas, mas é melhor fazer isto que partir os vidros todos do nosso matadouro como já tinha feito há uns tempos, concluiu o Zé do Alfredo perante o olhar impávido do senhor Jaime e do Júlio  que tinham chegado ao matadouro naquele momento.
   O cão “faine” (“fine”, em inglês) um “boxer” obediente e bem domesticado pelo dono, estava impávido, junto ao seu dono, senhor Jaime, com uma faca segura nos dentes para a entregar. O “faine” fazia muitos recados e era dotado de muito expediente e fugia da “vadiagem”….
   O Quim Tripas cozinhava os rabos e, muitas vezes, comia-os crus e a acompanhar,  bebia  um copo de sangue que lhe sabia pela vida… Mas não era o único que bebia ou comia sangue –cozido-  já que muitas  crianças da ribeira também o faziam porque “fazia bem” à saúde… Era uma “receita” da época” onde a medicina  apresentava muitas insuficiências e não estava evoluída como nos tempos de hoje.
   Naturalmente, que o Quim Tripas não regressou, tantas vezes, ao matadouro, para o assalto aos rabos dos chicos mas, longe em longe, perante a distracção dos talhantes, os  porcos ficavam novamente,  sem rabos e eles diziam:
   O Quim Tripas passou por aqui, mas já estamos habituados, afirmavam, conformados, os talhantes perante estas incursões do incorrigível Quim Tripas. Era uma criança ousada, destemida, aventureira, esperta e pugnava apenas, pela sobrevivência através de diversos expedientes  e,  nesses tempos, os estômagos de muitas crianças, “davam“ horas a todo o momento  porque o alimento não abundava nos seus lares.
    O Matadouro de Esposende, mais tarde, acabou, por encerrar, nos meados dos anos sessenta e o Quim Tripas adiou as suas traquinices contudo, outras  aventuras apareceram que agitaram e despertaram o mundo das  “crianças da nossa ribeira” que sempre viveram alegres, livres, felizes e confiantes na sobrevivência.
Esposende 6 agosto de 2014      
"Cantinho dos lobos do Mar